quarta-feira, 28 de outubro de 2009

O QUE A ARTE PODE TOCAR NO PROCESSO EDUCATIVO?

Espaço inventado: o teatro pós-dramático na escola

Carminda Mendes André

UNESP
Doutora pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo - USP. Integra-se ao quadro docente do Departamento de Artes Cênicas, Educação e Fundamentos da Comunicação do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" – UNESP – São Paulo, Brasil. E-mail:
carminda.stenio@uol.com.br



O QUE A ARTE PODE TOCAR NO PROCESSO EDUCATIVO?

Ao repensar Nietzsche, Foucault (2005) defende o conhecimento como uma atividade de invenção humana e desmistifica a idéia de um instinto para o conhecimento. Em tal perspectiva, o indivíduo não vai em busca do conhecimento como impulso de uma natureza inclinada para o esclarecimento, para a curiosidade do saber, sem que algum interesse de ordem política o leve a isso. O conhecimento torna-se uma das estratégias que os homens adotam diante de algo que quer e que precisa dominar; o desejo por conhecimento é motivado pela busca de algo de que temos necessidade e que nos falta.

Ao aproximar tais interpretações da realidade da escola, a educação amplia sua função de divulgadora dos resultados dos projetos científicos ou, no caso do teatro, para além da alfabetização do indivíduo na linguagem da cena produzida por profissionais. Desse modo, a educação adquire a qualidade de se tornar um lugar de invenções, um lugar para se pensar estrategicamente, levando os sujeitos do processo de ensino/aprendizagem a conhecer modos de apropriação das coisas e, quiçá, provocando-os a inventar táticas ou, dizendo de outro modo, "maneiras de fazer" para alcançar aquilo que lhes é vital e que lhes falta.

Nessa perspectiva educativa, não há sentido em ensinar o "como se faz", "técnicas do fazer" teatro; ao contrário, suas formas afloram no bojo das necessidades e da falta de algo que surge entre os sujeitos no processo de ensino/aprendizagem. Sabe-se que tais necessidades não aparecem ao acaso, mas que precisam ser provocadas para sair do silêncio. Isso quer dizer que o modo e a maneira de atuar do professor são de fundamental importância. A ação de sua docência é aquilo que provoca, pois é ela que funcionará, em primeira instância, como "interrupção".

A compreensão de que o conhecimento colhido – as formas artísticas estudadas e produzidas pelo grupo – é resposta às suas provocações é dado fundamental para a orientação do professor. Se ele apresentar aos alunos as problemáticas de um mundo colonial, os conhecimentos gerados provavelmente girarão em torno desse tema. Porém, se ele apresentar contradições que envolvam os sujeitos na atualidade, o conhecimento produzido aproximar-se-á do mundo em que essas formas são geradas. Assim, o educador que conheça as problemáticas que envolvem as produções culturais do ensino e da arte da atualidade terá melhores condições de inventar estratégias que funcionem como "interrupções", produzindo estranhamentos nas imagens de realidade que daí emergem.

Para ilustrar a noção de ação educativa de tipo estratégico, apresenta-se a seguir uma historieta da cultura zen, de autoria anônima, intitulada "A arte da luta":

Havia uma família que tinha um pequeno sítio. O pai trabalhava de sol a sol para garantir que a propriedade ficasse para seus dois filhos quando morresse. Um dia, o pai ficou doente e, antes de morrer, repartiu a propriedade em duas metades iguais, pedindo que os irmãos prestassem ajuda mútua para torná-la cada vez mais produtiva.

E assim aconteceu até que o filho mais velho, casado, insuflado pela mulher, achou que, por ser casado, teria mais necessidades que o irmão mais novo, solteiro. E assim exigiu do irmão, à força, que lhe fosse entregue mais terra. Acuado, o irmão solteiro deixou seu irmão casado ocupar mais espaço de sua terra. Mas a mulher do outro, não satisfeita, convence o marido a conseguir toda a propriedade. O mais novo, não aceitando, acaba por ser expulso de suas terras, posto que o mais velho era muito mais forte.

Sem dinheiro, machucado, o jovem solteiro tornou-se um pedinte errante. Um dia, enquanto caminhava em um vilarejo, observou a presença de vários monges Shaolin comprando comida. Sabia que aqueles monges eram bons em artes marciais. Se pudesse aprender – pensou –, poderia expulsar seu irmão das terras. Seguiu-os, então, de perto e assim que chegaram ao templo pediu para ver o chefe. Contou para o chefe que sofrera uma grande injustiça, que seu irmão apoderara-se de suas terras e que gostaria de aprender a lutar para poder recuperá-las.

O chefe, que era um mestre na compreensão das necessidades humanas, ponderou por alguns instantes e disse:

- Se você estiver realmente decidido a enfrentar um treinamento duro e difícil, você será aceito como aluno aqui.

Aceitando o desafio, no dia seguinte, no amplo terreno do mosteiro, o jovem errante encontrou-se com o mestre, que carregava um bezerrinho no colo, em frente a um pequeno salgueiro, e disse ao aprendiz que, antes de aprender a arte da luta, ele deveria ficar forte. Para isso, o fez segurar nos braços o bezerrinho, instruindo-o a pular sobre o salgueiro 50 vezes de manhã e 50 vezes à tarde.

O aprendiz, obediente, executou a tarefa durante dias, meses e anos. O bezerro havia virado uma vaca e o pequeno salgueiro tornou-se uma grande árvore. Até que um dia o rapaz quis falar com o mestre:

- Mestre, há três anos eu pego a vaca nos braços e pulo sobre a árvore. O senhor não acha que eu já sou forte o suficiente par aprender a lutar?

- Você não precisa aprender mais nada. Seu treinamento na arte da luta já está completo. Agora você tem força suficiente para reconquistar o que deseja. Leve a vaca com você e utilize-a para cultivar a terra.

- Mas... eu não aprendi nada de arte marcial! O que devo fazer se meu irmão vier me bater?

- Não se preocupe. Se seu irmão vier lhe bater de novo, pegue a vaca no colo e corra em sua direção. Não haverá luta!

Desconfiado, o rapaz temeu estar sendo vítima de algum tipo de piada. Mesmo assim, puxou a vaca e deixou o templo Shaolin. Chegando em suas terras, começou a cultivá-las. O irmão mais velho, assim que soube da volta do irmão mais novo, decidiu quebrar-lhe os ossos para que nunca mais ouse voltar.

Enquanto o irmão mais novo cultivava a terra, viu seu irmão, espumando de ódio, correndo em sua direção com um imenso porrete. Imediatamente, lembrou-se do que o mestre havia dito e pegou a vaca no colo, correndo em direção ao seu irmão, que, assustando-se ao ver aquela cena inesperada e não sabendo que o irmão tivesse tanta força, amedrontado, saiu correndo e nunca mais incomodou o irmão mais novo.

Como se produz o conhecimento em tal historieta? Quais as motivações do aprendiz? O jovem está na mendicância e necessita reconquistar suas terras para sair dessa situação. Esse é seu contexto de crise. Para isso, deve aprender a enfrentar seu irmão mais forte. Nesse sentido, a busca do conhecimento não se origina de uma faculdade do saber ou da vocação para o conhecimento, e sim da necessidade de reconquistar algo. O que se quer reconquistar?

A ambição, expressa na voz da cunhada e realizada na atitude agressiva do irmão mais velho, é determinante para as mudanças. Criado o desamor e o ódio entre os irmãos, o contrato social é facilmente rompido. O que gera esse rompimento? Um mundo sem ordem, sem forma, sem beleza, sem sabedoria, sem harmonia, sem lei. Portanto, é contra esse mundo desordenado que o irmão mais novo lutará. Assim, o que se quer reconquistar é o equilíbrio, a beleza, o saber, a harmonia, para que possam reescrever o contrato social.

Nesse sentido, conhecer não implica sanar o mal e restabelecer o amor entre as partes. Para obter as terras de volta e sair da mendicância, é preciso que o jovem se distancie do afeto que tem ao irmão mais velho e se torne tão ou mais agressivo que ele, que se torne um estranho. Diz Foucault que "é somente nessas relações de luta e de poder – na maneira como as coisas entre si, os homens entre si se odeiam, lutam, procuram dominar uns aos outros, querem exercer, uns sobre os outros, relações de poder – que compreendemos em que consiste o conhecimento." (FOUCAULT, 2005, p. 23). Diante disso, pode-se dizer que conhecer implica reconhecer aquilo que nos falta e marcar uma posição estratégica para a reconquista.

O restabelecimento da ordem no mundo da historieta não se faz na luta pela força, mas no efeito de certo modo de lutar que lembra brincadeiras infantis. Se há sapiência na luta é não causar outros desequilíbrios, respeitando a vida. Nesse caso, o conhecimento técnico deve funcionar como uma estratégia, a escolha de um lugar onde se possa ver o oponente e não ser surpreendido por ele; e a ação possa funcionar como tática capaz de surpreender o outro, invertendo as relações de força e sem causar maiores desequilíbrios, para que a situação possa ser estabilizada.

Uma das características instigantes dessa luta é que seu sucesso não se origina da força do guerreiro em posição desfavorável, apesar de estar relacionada a ela; nem em algo extraordinário encontrado no mundo como um presente divino dado ao injustiçado, apesar de tal estratégia estar relacionada ao acaso do encontro com o mestre Shaolin. O jovem injustiçado não é heroificado, pois não foi transformado em uma supernatureza humana potencializada à realização do bem. O conhecimento não depende das qualidades físicas e morais do aprendiz, não é uma faculdade sua, posto que o aprendiz é apenas um homem simples, injustiçado e necessitado. Do ponto de vista do ensino do teatro, esse processo desmistifica a idéia de "dom artístico". Assim, para se fazer teatro não é preciso uma mente diferenciada, mas apenas o sentimento de necessidade e falta de.

Por outro lado, o mestre não ensina nada de extraordinário, algo que não se saiba. Tornar o jovem um sujeito fisicamente forte e presenteá-lo com uma vaca é qualificar o lavrador que ele já é. Buscar uma tática não sangrenta para alcançar o equilíbrio de uma situação também é o óbvio. Mas buscar surpreender o oponente de maneira inusitada é lição básica para quem pretende fazer arte de vanguarda e não de um guerreiro comum. O mestre busca o efeito da surpresa do mesmo modo que o artista, pois sabe que é na surpresa, no choque, no vazio provocado pela "interrupção", que a experiência da transformação pode se dar. A orientação para a "cena da vaca" é motivada a partir de uma ação educativa do tipo estratégica.

Para as finalidades educativas do zen, a historieta termina com a conquista da estabilidade, sem qualquer derramamento de sangue. Nessa perspectiva, o ensinamento coincide com o que se quer dominar: o equilíbrio. Ensinar não é adaptar o sujeito às condições já encontradas, mas delas se utilizar a seu favor; nem é mostrar resultados de situações passadas, já dominadas; ensinar é agir nas necessidades imediatas do aprendiz, inventando estratégias para a luta em produzir o conhecimento que lhe permitirá adquirir o que lhe falta. Por essa via de análise, pode-se dizer que aprender, longe de ser informar-se, acumular ou formar alguém, é revelar necessidades e carências já existentes.

Conforme a historieta, diante do pedido do aprendiz, o mestre procura uma maneira de fazer com que ele retome seu ofício de lavrador. Ao nos apresentar certa maneira de aproximar "salgueiro", "vaca" e "força física" de uma cena de teatro, além de mostrar o hieróglifo da identidade do aprendiz, o mestre diferencia conhecimento técnico de saber. O movimento que faz o aprendiz é sair de si para voltar a si. Dessa maneira, o mestre mostra que seu alvo, o saber, não está na luta pela conquista da terra: o aprendiz padece de sua própria identidade e isso lhe turva a consciência de si, fato que somente poderá alcançar na experiência da luta pela própria identidade, caso isso seja possível, ou pela experiência da alteridade.

Por outro lado, a luta faz surgir um espaço, inventado, para fazer acontecer a apropriação desejada. A estratégia usada deve, no entanto, provocar o efeito surpresa, que se estende até o leitor, que ri. O momento do espanto, produzido pela historieta, é semelhante a uma cena de tragédia, pois é cômico e é trágico. No vazio que os sujeitos experimentam, conscientizam-se daquilo que os aterroriza: o medo da privação de, da ausência de.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-46982008000200007&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

Educação em Revista

O QUE É VITAL QUE A ARTE TOQUE NA ESCOLA PARA QUE ELA NÃO MORRA?


Texto integral com o títúlo abaixo
Espaço inventado: o teatro pós-dramático na escola

Carminda Mendes André

UNESP
Doutora pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo - USP. Integra-se ao quadro docente do Departamento de Artes Cênicas, Educação e Fundamentos da Comunicação do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" – UNESP – São Paulo, Brasil. E-mail: carminda.stenio@uol.com.br

O QUE É VITAL QUE A ARTE TOQUE NA ESCOLA PARA QUE ELA NÃO MORRA?

O que dizer da necessidade da arte dentro da escola? Onde se pode perceber a privação da experiência com a arte no ambiente escolar? Não é preciso fazer análises profundas das políticas educacionais ou dos projetos pedagógicos, ou ainda dos programas de ensino, para perceber que a arte marca sua ausência na maioria das escolas públicas paulistas. Essa ausência está sinalizada pelo terror à ação do tempo, ao envelhecimento, terror à morte. Para observar sinais da falta da experiência da arte nas escolas, convida-se o interlocutor a andar pela cidade de São Paulo com o único propósito de observar os elementos que envolvem o cotidiano das escolas públicas.

O que dizer da arquitetura de uma escola pública quando comparada à planta baixa de uma penitenciária de porte semelhante? Nessa comparação, pode-se constatar um modelo institucional que não diferencia o uso de seus usuários, de modo que tudo pareça igual. Outros objetos se dão para o olhar perscrutador que se aproxima de uma escola: o que dizer das calçadas esburacadas, da conservação de muros e paredes, tomados de pixações de total mau gosto? O que dizer das grades externas e das que separam ambientes internos? E os portões trancados: como é trabalhar em um lugar trancado? O que dizer do sistema interno de câmeras de segurança e das rondas policiais escolares? Em um país tropical, como haver aulas com um teto de zinco sobre as cabeças? O que dizer da visão de destruição com os bebedouros de torneiras arrancadas, dos banheiros, das cadeiras e carteiras? E os alunos com armas de fogo e a violência de palavrões arremessados por alunos e professores? O que dizer do mau humor generalizado de funcionários, serventes de limpeza e merendeiras, cuja voz se ouve em gritos a esmo? O que dizer dos dispositivos governamentais para punir as escolas pelo número de funcionários com licença médica e pelo mau desempenho dos alunos em exames elaborados fora da escola?

Por parte da opinião pública, há certa dificuldade em admitir o modelo panóptico4 nas intuições de ensino – básico ou superior – na cidade de São Paulo. A presença de câmeras de vigilância, catracas, grades e rondas policiais escolares está mais próxima da idéia de segurança do que de vigilância, e isso confunde. No entanto, há ambigüidade nessa situação: por que tais práticas existem nos espaços e no entorno da maioria das escolas paulistas de ensino básico, tanto públicas quanto particulares, e nestas a sofisticação dos instrumentos é maior? Que tipo de educação se faz com esses instrumentos? Somando-se a esse quadro de destruição, observa-se que a arte está sendo apropriada ou para instrumentalizar a fixação do conteúdo de outras matérias ou para a realização de espetáculos em datas comemorativas e em final de ano, para a satisfação de pais e diretores, posto que os professores são obrigados a mostrar "resultados visíveis" em apresentações públicas. A afirmação de funções decorativas para a arte demonstra, mais uma vez, a ausência desse naquele ambiente.

Entende-se que o desafio do pesquisador é compreender a violência no ambiente escolar paulistano, sem cair nas opiniões do senso comum, que "encontra culpados" na prática da corrupção e no desvio de verbas ou na falta de educação dos alunos e na ausência dos pais. Sem negar esses fatores como possíveis causadores dessa violência, deseja-se olhar outros cantos da escola e buscar relações entre essa cena de destruição e o aumento dos casos de tragédia causados por jovens com armas de fogo, dentro ou fora das escolas, no mundo das Américas. Algo acontece que não é explicitado. O que seria? Desconfia-se que há um conflito nãoadmitido por aí. Uma guerra velada é dizer demais?

Tal fato não é privilégio da escola, pois se pode afirmar que essas questões são, hoje, um desafio de todo indivíduo que deseja se manter sujeito de si e do mundo. Michel De Certeau (1994), retomando as perspectivas de Foucault sobre o projeto civilizatório da modernidade no ocidente judaico-cristão, organizado a partir do modelo panóptico e de suas teorias sobre a microfísica do poder – de que este é algo que não está fora, mas impregnado no minúsculo das práticas cotidianas –, sai às ruas à procura de ações populares que denotem o enfrentamento dessa hiperdisciplina que deforma. Nesse caminhar de andarilho, o autor parte da seguinte questão:

Se for verdade que por toda a parte se estende e se precisa a rede da "vigilância", mais urgente ainda é descobrir como é que uma sociedade inteira não se reduz a ela: que procedimentos populares (também "minúsculos" e cotidianos) jogam com os mecanismos da disciplina e não se conformam com ela a não ser para alterá-los; enfim, que "maneiras de fazer" formam a contra partida, do lado dos consumidores (ou "dominados"?), dos processos mudos que organizam a ordenação sociopolítica. (DE CERTEAU, 1994, p. 41).

Essas "maneiras de fazer", De Certeau as conceitua como "táticas antidisciplinares", posto que são maneiras que os consumidores – os "dominados" – inventam para se apropriar daquilo que lhes falta. Como exemplo, podem ser citadas as apropriações do espaço público feitas por pessoas despossuídas de casa – os mendigos – e que encontram espaços não-vigiados para criar sua intimidade. Essas "maneiras de fazer" são ações que agem contra as redes de vigilância e, por isso, diz o autor, funcionam como atos conscientes desses dispositivos de vigilância. Desse modo, De Certeau afirma haver uma cultura que aparece entre a população, silenciosa, constituída de ações que são desvios das redes de vigilância sobre o cotidiano hipervigiado.

Na observação de como trabalham alguns coletivos de artistas5, percebe-se a existência de uma cultura que brota do asfalto, das ruas do centro da cidade de São Paulo, distinta daquela chamada de culta e de popular, mas que muito se aproxima das observações de De Certeau na sua Paris. A arte que ali se expressa não é de profissionais especialistas em arte; ali se encontram estilistas, músicos, atores, escritores, artistas plásticos constituídos com elementos da rua. É uma arte da rua. Mas dificilmente ela se mostra como arte pura, pois está, em sua maioria, atrelada a alguma necessidade primária: religiosa – como é o caso dos pastores que desenvolvem modos de declamação interessantíssimos para expressar sua fé e atrair fiéis – ou de sobrevivência – como é o caso dos inventores de "oráculos" para ler a sorte dos indivíduos ou as táticas cênicas de vendedores ambulantes, além de tantos outros exemplos.

Essas são manifestações culturais resultantes de necessidades de quem precisa burlar as regras institucionalizadas do lugar público e garantir a própria sobrevivência, reinventando novos usos não-autorizados para esse lugar. Longe de menosprezá-las, o que aqui se pretende é dar legitimidade a elas, pois é graças a sua aparição que De Certeau constata a atitude inventiva de uma sociedade que não se deixa aprisionar pelas tais redes de vigilância.

Outros exemplos dessa "cultura popular" podem ser observados. Veja-se a ação dos pixadores que se dedicam a burlar os mecanismos de segurança, correndo risco de morrer, executando verdadeiros malabarismos em arranha-céus de grandes cidades brasileiras para deixar mensagens em um código para iniciados. Ou então atitudes como a do grupo musical paulistano Barbatuques6, que desenvolve música com sons retirados do corpo, eliminando completamente o uso de instrumentos musicais convencionais. Ou ainda artistas plásticos que saem nas ruas desenhando e pintando bueiros; mais, o próprio grupo Alerta!, que intervém com cenas-jogos em praças e ruas juntamente com camelôs. Todos eles têm em comum a atitude de usar materiais desprezados e realizar soluções artísticas que confrontam a especialização, a informatização dos meios de produção, a cultura industrial do entretenimento e contra-argumentam com os mecanismos impostos de modernização.

Para atuar nesse campo, tem-se desenvolvido uma atitude de andarilho para descobrir espaços do "nós despossuído", dos sem destino, daquilo que ainda não tem identidade. A atitude distanciada – porém não neutra – torna-se condicional. E para se alcançar um processo de invenção de alteridades, é preciso um esforço de atenção por parte dos participantes, para que possam capturar as provocações que a cidade – ou a escola – oferece, mas, ao mesmo tempo, não se prendendo a desejos individualistas. Ao receber provocações externas, o atuante sofre a experiência no sentido dado por Jorge Larrosa (2004), que a conceitua como um momento de exposição do sujeito, posto que ele estará aberto a sofrer ocorrências encontradas pelo caminho.

Do ponto de vista dessa cultura que fura a rede de vigilância, interpreta-se a violência na escola como efeito de uma "maneira de fazer" que explicita o mal-estar de um corpo assujeitado e hiperexposto pelas redes de vigilância, sintoma de que há cada vez menos espaços livres para o exercício da interioridade. Esse corpo, jovem ou não, torturado pela vigilância sobre a qual ele não sabe bem o porquê, muitas vezes, grita.

Na perspectiva observada de outro lugar, a cena que se afigura na escola sinaliza o rompimento do contrato social vigente e o conseqüente desaparecimento dos vínculos comunitários entre os usuários do lugar. Assim, aquilo que mostra a metáfora da guerra é a necessidade de se repensar o espaço da escola, de reescrever os princípios da educação e refletir novamente sobre os princípios do contrato social, de modo que todos possam participar. Ao se querer que a educação escolar torne-se algo vivo e positivo para todos, luta-se para que todos os indivíduos aí presentes percebam a necessidade de se desarmar a rede da vigilância, conquistar espaços livres, para que eles mesmos não desapareçam como sujeitos de si e do mundo.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-46982008000200007&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

Educação em Revista

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Psicologia de elevador

O meio de transporte, tão comum nas grandes cidades, nos obriga a dividir nosso espaço vital com estranhos e coloca à prova a capacidade de comunicação
por Massimo Barberi
ANDREA EBERT


O elevador é o meio de transporte mais usado nas grandes cidades. Só em São Paulo estima-se que existam mais de 270 mil unidades. E cerca de 8 mil novos são instalados a cada ano no Brasil. A caixa metálica iluminada, com painel de botões e, em alguns casos, um espelho, proporciona o deslocamento vertical de forma muito simples e eficaz – e também explicita modos de interagir. Há os que se sentem donos da situação, justamente porque se encontram em uma área restrita. Outros experimentam o desconforto de compartilhar o espaço vital, tão exíguo, com desconhecidos e, intimidados, torcem para chegar logo ao andar de destino. Existem ainda aqueles que usam o local para jogos sexuais O fato é que cada um de nós tem uma forma de enfrentar o elevador. Com exceção, obviamente, dos que sofrem de claustrofobia e preferem a escada.

Em uma pesquisa realizada nos Estados Unidos em 2001, foram usadas câmeras de vigilância em 15 edifícios públicos. A idéia era identificar e quantificar comportamentos típicos adotados no meio de transporte, a começar pela posição escolhida no interior da cabine. A posição preferida por 47% das pessoas, quase dois terços das quais do sexo masculino, é aquela próxima à parede oposta à porta, ou no máximo ao centro. Não por acaso, é uma localização que permite manter sob controle todo o espaço visual. Na prática, uma posição de poder. Isso é confirmado pelo fato de que oito em cada dez pessoas das que ficam diante da parede posterior assumem duas posturas típicas de comando: braços cruzados, sinalizando a interdição à aproximação alheia, ou com as mãos apoiadas na cintura.

Cerca de 30% dos passageiros solitários, com predomínio do sexo masculino, se colocam diante da porta. Manifestam certa impaciência e parecem não ver a hora de sair. Os ingleses os chamam de front runners: muitas dessas pessoas mantêm o nariz a menos de 20 cm da porta, de forma que possam sair assim que ela começa a se abrir. Os 24% restantes se posicionam mais ou menos igualmente à esquerda ou à direita da porta, com ligeira preferência pelo lado em que se encontra o painel.

As coisas mudam quando se trata de elevador já ocupado por um ou mais passageiros. Se a pessoa que já está dentro se posicionou no fundo, os recém-chegados se colocam no lado da porta, à direita ou à esquerda. Também se comportam dessa forma aqueles predispostos a ocupar a posição do fundo quando estão sozinhos. Apenas 2% forçam a situação, ocupando a parede do fundo e obrigando o outro a se espremer em um dos dois ângulos, simulando uma espécie de guerra territorial.

DISPUTA TERRITORIAL
Os front runners, que estão com o nariz perto da porta, não mudam muito seu comportamento quando encontram alguém no fundo: colocam-se sempre na proximidade da saída, mas ligeiramente de lado, de modo a deixar espaço para quem está atrás sair rapidamente, possivelmente como eles mesmos fariam. Se, no entanto, a pessoa que já está dentro escolheu um dos ângulos, a que entra tende a manter a mesma atitude, ocupando o espaço que lhe é mais adequado.

A coisa se complica um pouco se o elevador está cheio. Em geral, pode-se afirmar que o indivíduo que entra ocupará o espaço livre disponível, dando preferência à sua própria inclinação quando está “solitário”. Se no elevador estiverem quatro pessoas, nenhuma delas diante da porta, em 90% dos casos o quinto será o front runner, abrindo mão do que teria feito se estivesse sozinho. Apenas uma minoria dos que entram em um elevador lotado tentará se posicionar em um espaço estreito, constrangendo os outros a se deslocar e causando certo aborrecimento aos demais.

Para tentar explicar esses comportamentos, é preciso recorrer aos nossos ancestrais, do Homo erectus ao Neanderthal e aos primeiros Homo sapiens. Eles necessitavam de um vasto território para assegurar a subsistência do grupo. Na ausência da agricultura, da criação intensiva de animais e de armas adequadas, para matar a fome precisavam de extensas áreas para caçar e colher frutos silvestres.

“Essa exigência é observada também em muitas espécies animais que marcam os limites com a própria urina”, diz o sociólogo italiano Roberto Tassan, especialista em comunicação e comportamento humano. Ainda que o homem moderno seja, pelo menos na aparência, um pouco mais evoluído e não marque o território com as próprias secreções, ele usa sinais comportamentais de natureza subliminar que têm o mesmo significado. “Parece que o indivíduo que entra primeiro em um local fechado, como o elevador, considera inconscientemente que conquistou uma espécie de direito de precedência, enquanto o recém-chegado assume um comportamento de ligeira subordinação psicológica em relação aos que já conquistaram o terreno”, observa Tassan.

Segundo esse ponto de vista, faz sentido que o indivíduo que entra primeiro no elevador em geral se posicione ao fundo, dando as costas à parede, como se usasse a linguagem corporal para expressar, até inconscientemente, uma mensagem do tipo: “Este território é meu e você é um intruso”. “As paredes oferecem sensação de segurança. Por isso, sem se dar conta, a pessoa se posiciona com as costas protegidas”, esclarece Tassan. O discurso, obviamente, não vale para os front runners, que não querem se comunicar e tendem a dar as costas até aos que entram depois.

DIZER SEM PALAVRAS
Estar no elevador junto a outras pessoas significa compartilhar um espaço restrito, no sentido de que estamos constrangidos a nos relacionarmos com outros indivíduos, em geral desconhecidos, a uma distância física que normalmente não seria tão curta. Entra em jogo, portanto, a prossêmica, isto é, o estudo a organização do espaço durante as relações interpessoais e a sua relevância para a comunicação.

A prossêmica fixa regras precisas que estabelecem o espaço de proximidade com o outro. Há variações entre indivíduos e de uma cultura para outra. Naturalmente, a distância é menor no caso das relações íntimas e maior nos relacionamentos sociais. É como se cada ser humano fosse circundado por uma bolha virtual, que só pode ser invadida nas relações íntimas, nos rituais rápidos de saudação (como o beijo na face de um amigo ou apenas conhecido), ou em circunstâncias caracterizadas por manifestações agressivas. “São regras não escritas, que não têm validade em espaços fechados e restritos como o elevador, no qual somos obrigados a infringi-las. A ruptura de tais regras pode provocar em certas pessoas intenso desconforto e sensações aversivas.

Para tentar esconder o desconforto quando está no elevador com estranhos, é comum a pessoa se concentrar na inscrição sobre o peso máximo permitido, lendo-a e relendo-a várias vezes, como se fosse um mantra mental, ou observar ansiosamente as luzes do painel. Na prática, o sujeito tenta enfrentar a invasão da bolha. “Em geral, as que mais sofrem são as pessoas cuja educação foi marcada por certa rigidez e escasso contato físico”, diz Tassan. O elevador tem portanto outras regras, que ultrapassam as da prossêmica e dizem respeito à comunicação - em particular a não-verbal.

É preciso, porém, distinguir dois contextos, cada um com características específicas: o de elevadores “conhecidos” da empresa onde trabalhamos ou do condomínio onde moramos, dos elevadores públicos (como os de hospitais, centros comerciais ou aeroportos). O primeiro transporta pessoas que mais ou menos se conhecem, ao passo que o público é freqüentado por indivíduos que em geral nunca se viram.

É este o contexto mais interessante no que diz respeito à comunicação. Segundo o teórico e pesquisador austríaco Paul Watzlawick, um dos fundadores do Instituto de Pesquisa Mental em Palo Alto, Califórnia, morto em março de 2007, a comunicação é um comportamento e, como não existe um não-comportamento, é impossível não se comunicar de alguma maneira - com ou sem palavras. Assim, quando compartilhamos com outros um espaço físico estamos, paradoxalmente, obrigados a nos comunicar. Não há escapatória. Pode-se comunicar disponibilidade e a atitude amigável com o sorriso ou dar indícios de desejo de não interagir por meio da postura corporal fechada. Dar as costas a quem se encontra no elevador conosco, por exemplo, significa negar-se a qualquer forma de aproximação além da inevitável.

Este último é um dos chamados gestos de barreira. O mais comum deles, no elevador, é cruzar os braços. A posição diagonal do braço diante do tórax, que adotamos para acertar o relógio, também pode ser considerada um gesto instintivo de defesa. Outro modo de negar a comunicação aos companheiros de viagem é o “olhar velado”, que ignora o outro voltando-se para um detalhe da própria roupa, para algum acessório ou objeto que se tem nas mãos. Tais dinâmicas ganham ênfase na situação em que as pessoas transportadas se conhecem. Quando damos as costas a um colega ou vizinho, o gesto assume um significado muito mais enfático do que quando estamos em companhia de desconhecidos.

Certas pessoas sentem, no elevador, um irresistível impulso de falar, ao passo que outras evitam até dizer um rápido “bom dia”. Desse ponto de vista, é possível distinguir – ainda que de forma muito superficial – três tipos gerais: o extrovertido, o introvertido e o que, na análise transacional, é definido como “ok-não ok”. O primeiro seria uma pessoa voltada para os outros, que tem necessidade de comunicar para se sentir psiquicamente viva, enquanto o introvertido é reservado e dificilmente toma a iniciativa de romper o silêncio, ainda que aceite que outros o façam e até participe de uma conversa com estranhos. É improvável, porém, que o introvertido, em geral dotado de uma rica vida interior que o leva a se perder nos próprios pensamentos, distanciando-se com a mente do ambiente em que se encontra, inicie um diálogo. O terceiro tipo, o ok-não ok, seria o indivíduo que costuma comparar-se constantemente com os demais, desprezando-os ou sentindo-se inferior, com base em informações subjetivas e, em geral, preconceituosas. Com freqüência, desloca-se para duas posições, ambas desconfortáveis: sente-se constrangido e afasta-se, na tentativa de se proteger do desconforto, ou julga que as pessoas não são dignas de sua atenção e, portanto, não tem interesse em estabelecer contato.

EM CASO DE PÂNICO

A sensação claustrofóbica evocada pelo elevador pode atingir pessoas de qualquer idade e sexo. Mesmo os que freqüentam elevadores há anos podem, inesperadamente, desenvolver um terror descontrolado e irracional, manifestando sintomas de ansiedade e angústia, sensação de sufocamento, sudorese, náusea, falta de salivação, tremores, palpitações, incapacidade de pensar racionalmente e perda de controle.

“A gênese da claustrofobia remonta ao processo evolutivo: no longo percurso que transformou os primatas em seres humanos, nossos ancestrais pré-históricos muitas vezes se encontravam em situações de perigo, privados de qualquer possibilidade de fuga”, diz Tassan. Segundo ele, a reiteração dessa situação parece ser a matriz da fobia. Além disso, há o agravante de um dado da realidade: o elevador é um meio mecânico que pode quebrar ou –- em casos raríssimos – despencar.

O claustrofóbico teme não apenas a queda, mas a parada entre dois andares e o aprisionamento forçado durante a interminável espera por socorro, enquanto o oxigênio se reduz. É provável que, menos freqüentemente, o transtorno esteja ligado a fatores de natureza anatômica. No ouvido interno, o labirinto, que assegura a sensação de equilíbrio, pode provocar vertigens, tonturas e náuseas em caso de alterações – algo similar ao mal-estar que certas pessoas experimentam viajando de navio ou andando de carro em estrada sinuosa.

CONCEITOS-CHAVE
Comportamentos de nossos ancestrais podem ajudar a compreender as atitudes adotadas hoje nos elevadores. Os primitivos necessitavam de um vasto território para assegurar a subsistência do grupo. Ainda que o homem moderno seja, pelo menos na aparência, mais evoluído e não marque o território com as próprias secreções, ele usa sinais subliminares, dos quais nem sequer se dá conta, para delimitar seu território.

O contato no elevador pode romper as regras da prossêmica – a organização do espaço durante as relações interpessoais e a sua relevância para a comunicação, considerando variações entre indivíduos e de uma cultura para outra. A distância é menor entre pessoas com quem temos relações mais íntimas e maior nos casos de relacionamentos sociais. É como se cada ser humano fosse circundado por uma bolha virtual, que só pode ser invadida nas relações íntimas, nos rituais rápidos de saudação, nas manifestações agressivas.

É possível distinguir, embora de maneira superficial, três tipos básicos de usuários de elevador: o extrovertido (que em geral inicia conversas), o introvertido (que habitualmente fala somente quando lhe é solicitado) e o auto-suficiente (que, com gestos de restrição, explicita insegurança ou desprezo em relação a si e aos demais).


SOBE-E-DESCE
ANDREA EBERT


Algumas pessoas têm preferência por locais pouco convencionais para as práticas sexuais. A fantasia dos amantes não tem limites, mas o sexo no elevador (como, não raro, as filmadoras registram) tem algo específico. “Em banheiros de restaurantes ou aviões, no escritório ou no carro, por exemplo, é possível fechar a porta a chave e não ser descoberto; já no elevador há sempre o risco de a porta se abrir e aparecer um estranho”, comenta Ciro Basile Fasolo, antropólogo da Universidade de Pisa. Há ainda a possibilidade de que exista uma câmera escondida e de que alguém assista a tudo do início ao fim. “Tais comportamentos podem ser considerados extravagantes, algo que os ingleses definem como crazy. Mas o termo tem também um significado libertário, pode ser compreendido como uma forma de fugir da pressão do trabalho, da ansiedade social e da monotonia da relação conjugal”, diz Fasolo.


ENTRA-E-SAI
ANDREA EBERT



Para fugir do desconforto da convivência forçada, é comum que as pessoas adotem diferentes posturas, nem sempre condizentes com seu comportamento usual. Veja alguns desses tipos que surgem entre um andar e outro:

Intrometido – Falador e, em geral, indiscreto, sente-se no dever de conversar com todos, falando interminavelmente até o elevador se esvaziar.

Observador – Perscruta os outros da cabeça aos pés, observando detalhes da roupa ou características físicas; não fala, parece não exprimir nenhuma emoção e fica atento mesmo que o elevador esteja vazio.

Arrogante – Na maioria das vezes vestido de forma impecável, olha os outros com desprezo ou auto-suficiência e, em geral, é um front runner. Não raro, assume tal atitude por puro mal-estar causado pela proximidade alheia. Costuma sacar o celular assim que a porta abre.

Intratável – Faz de tudo para evitar qualquer contato, físico ou verbal. Se o elevador está ocupado, hesita entre entrar, usar a escada ou esperar a próxima viagem. Se alguém tenta romper o silêncio, fica quieto, olhando para frente.

Vaidoso – Busca imediatamente um espelho e, na falta deste, usa a superfície metálica que reflete sua imagem para ajeitar roupas, cabelos e sobrancelhas.

Inseguro – Mostra-se hesitante, atrapalha-se com o andar. Solicita as mais diversas informações.

PARA CONHECER MAIS
O elevador como objeto de estudo da psicologia ambiental. Viviane Cruvinel de Castro, em Textos de Psicologia Ambiental, págs. 1-3, 2005. Disponível em http://www.unb.br/ip/lpa/pdf/20Viviane2005.pdf

Comportamento nos elevadores: um estudo experimental. Marco Akira Miura, em Textos de Psicologia Ambiental, págs. 1-3, 2005.

Massimo Barberi é jornalista científico.

Revista Mente e Cérebro

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Entre o plágio e a autoria: qual o papel da universidade?


Obdália Santana Ferraz Silva
Universidade do Estado da Bahia, campus XIV, Departamento de Educação

Plágio no universo acadêmico: a negação da autoria

Antes de mais nada, pinto pintura. E antes de mais nada te escrevo dura escritura.

Lispector, 1980, p. 12

O que é um autor? Essa foi a pergunta que fez um dia o pensador francês Foucault. Considerando que a função autor sofreu variação na sua concepção ao longo do tempo, hoje, na sociedade informática em que se vive, essa pergunta poderia ser repetida com alguns acréscimos: o que é um autor e como se forma um autor no contexto de uma sociedade em que a tecnologia digital transforma a linguagem num elo virtual entre o homem e o mundo?

Essa é uma questão relevante, uma vez que a informação e os textos, nos tempos atuais, se encontram cada vez mais à mão, como um convite ao sujeito para mergulhar nos labirintos hipertextuais, para o exercício e a difusão da escrita ou para forjar como seu apenas um excerto, um parágrafo ou mesmo todo um texto, mediante cópia não autorizada.

O fato é que, historicamente, desde o ensino fundamental à universidade, se tem convivido com a prática de cópias de produções textuais de outrem, de forma parcial ou total, omitindo-se a fonte. No contexto da sociedade informatizada em que vivemos, essas discussões têm-se acentuado, haja vista as possibilidades que se vêm ampliando, pela internet, no que diz respeito ao graduando apropriar-se de obras protegidas por direitos autorais.

Daí partiu a necessidade de compreender questões como: de que forma os graduandos de letras, professores em formação, estão apropriando-se dos hipertextos digitais para produção de textos acadêmicos? Que concepção de plágio têm os graduandos de letras? Como a universidade tem tratado a questão da cópia entre esses futuros professores de língua materna?

Na intenção de refletir sobre essas questões, realizou-se uma pesquisa de campo com 20 graduandos de letras, professores de língua materna em formação, pertencentes a uma universidade pública do estado da Bahia. Constituiu-se campo de pesquisa um curso de extensão semipresencial, a partir do uso de interfaces como fórum, chat, diário e wiki (espaço para realização de escrita colaborativa), disponibilizadas no ambiente virtual de aprendizagem Moodle.

Constituíram eixos de análise: a produção textual, a leitura, o plágio, a co-autoria, partindo-se dos textos que os sujeitos construíram nas seguintes interfaces: o fórum e o chat sobre leitura e escrita na internet; o chat, espaço/tempo em que se discutiu sobre plágio; o diário, no qual os graduandos escreveram suas experiências de leitores/produtores de texto; e o texto colaborativo que construíram no wiki, como experiência de produção escrita em co-autoria.

Nas interfaces fórum e wiki do Moodle, os sujeitos produziram textos motivados pelas reflexões e discussões sobre o objeto, engendradas nos encontros a distância e presenciais. Tais produções textuais escritas, juntamente com os textos orais construídos pelos sujeitos em chats e entrevistas semi-abertas, contribuíram para a análise crítico-reflexiva e interpretação sobre como os sujeitos lêem e produzem textos a partir dos hipertextos digitais. Além disso, lançou-se mão da observação que forneceu subsídios para a análise e discussão sobre como lêem e escrevem os graduando de letras, como organizam suas idéias, como constroem conhecimentos, a partir do hipertexto digital.

Observou-se nesse estudo que, na contemporaneidade, computador e internet estão fortemente presentes na vida dos graduandos, os quais, em sua maioria, afirmam utilizar hipertextos digitais para pesquisas nos mais variados campos do conhecimento, principalmente visando à elaboração de trabalhos exigidos pela universidade.

A pesquisa realizada com os referidos sujeitos revelou indicadores sólidos que evidenciam o quanto os hipertextos digitais se vêm tornando a maior fonte de busca de informações e conhecimentos entre eles, seja para solucionar problemas referentes à falta de tempo, seja para dar-lhes embasamento teórico. Assim, na fala dos participantes os textos da internet lhes são úteis pelos seguintes motivos:

para suprir a falta de tempo para exaustivas pesquisas bibliográficas;
pela variedade de opções oferecidas pelos links;
como suporte para melhoria na construção dos argumentos;
embasamento teórico para ajudar na concretização de alguns trabalhos;
para esclarecimento de dúvidas em relação a determinados conteúdos;
para facilitar as atividades acadêmicas;
para suprir a falta de livros na biblioteca da universidade.
Desse modo, na busca por caminhos mais fáceis e mais velozes, e tendo como aliada a natureza aparentemente pública do conteúdo on-line, além da disponibilidade/acessibilidade dos hipertextos digitais, na universidade essa prática tem-se dado de forma mais abrangente e acentuada, haja vista a velocidade na transmissão das informações - cruas ou refinadas - e a grande quantidade de textos/obras à disposição do leitor na internet: "Fica difícil não plagiar com tantas oportunidades" (GB), declara um graduando envolvido na pesquisa. Tal fato vem potencializando esse clássico problema no espaço acadêmico: o plágio, como apropriação de linguagem e de idéias do outro; caracterizando violação da propriedade intelectual. De acordo com Fonseca:

O plágio se caracteriza com a apropriação ou expropriação de direitos intelectuais. O termo "plágio" vem do latim "plagiarius", um abdutor de "plagiare", ou seja, "roubar" [...]. A expropriação do texto de um outro autor e a apresentação desse texto como sendo de cunho próprio caracterizam um plágio e, segundo a Lei de Direitos Autorais, 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, é considerada violação grave à propriedade intelectual e aos direitos autorais, além de agredir frontalmente a ética e ofender a moral acadêmica. (Fonseca, s.d.)

É pertinente lembrar aqui que a concepção de plágio sofreu mudanças, de acordo com o momento histórico e as condições sociais de cada época. Assim, dentro de um determinado contexto, passa a ser aceitável e inevitável:

Antes do Iluminismo, o plágio tinha sua utilidade na disseminação das idéias. Um poeta inglês podia se apropriar de um soneto de Petrarca, traduzi-lo e dizer que era seu. De acordo com a estética clássica da arte enquanto imitação, esta era uma prática perfeitamente aceitável. O verdadeiro valor dessa atividade estava mais na disseminação da obra para regiões onde de outra forma ela provavelmente não teria aparecido, do que no fortalecimento da estética clássica. As obras de plagiadores ingleses como Chaucer, Shakespeare, Spenser, Sterne, Coleridge e De Quincey ainda são uma parte vital da tradição inglesa e continuam a fazer parte do cânone literário até hoje. (Critical Art Ensemble, 2001, p. 83-84)

Na obra Distúrbio eletrônico,1 os autores afirmam que o plágio, no sentido em que se almeja abordar aqui, talvez seja algo muito característico da cultura pós-livro, tendo em vista a atual economia da informação/conhecimento que se configura a partir do surgimento da internet e o manuseio constante e rápido do hipertexto,2 que veio apenas expor à vista, com a cultura digital, aquilo que a cultura do papel sempre deixou na obscuridade.

Ademais, o caráter de descontinuidade conferido ao texto no espaço digital torna-o livre de convenções. E é nesse movimento descontínuo, nessa constante navegação por entremeios de palavras e frases, entrelaçadas por alinhavos e arremates, que o sujeito corre o risco de naufragar, dissimulando-se como produtor da linguagem, enquanto o plágio vai revelando sua atemporalidade, ao passo que assume proporções notáveis e instigantes nos tempos atuais, principalmente no contexto acadêmico, como afirmam os sujeitos, na discussão feita no chat sobre plágio:

[...] Eu sou sincero. Plagiei semestre passado [...] eu sei que não é o caminho correto, mas desde q não seja prejudicial na minha construção do conhecimento. Aconteceu em uma disciplina que não considerava importante para mim, já que o curso de letras é muito abrangente e então sei o q é de meu interesse, o que acredito que seja de importância para mim e devo tentar aperfeiçoar-me; o que não era a disciplina na qual plagiei da net. (JL)3

Isso n quer dizer que só faremos copias [...] Cópia só será no momento de muita precisão [...]. Será que no mundo desde os primórdios nada foi copiado? Tudo tem seu formato original? (DO)

Essas são falas/escritas que fazem parte de uma discussão sobre o plágio na universidade, realizada por meio de entrevista com 19 dos 20 sujeitos graduandos de letras envolvidos numa pesquisa de campo de cunho qualitativo. A análise dos argumentos desses sujeitos revelou que 36,84% assumem claramente já terem cometido plágio de textos; 21% plagiam, mas não assumem claramente; 41,1% dizem não ser a favor do plágio.

Vale ressaltar que, apesar de este estudo referir-se ao plágio na área de letras, espaço em que ainda pouco se discute sobre o assunto, a ação de copiar - como violação da honestidade acadêmica e intelectual - e as relações que se estabelecem a partir dessa prática vêm sendo analisadas com seriedade por outras áreas na comunidade acadêmico-científica - por exemplo, na área de direito, ciências biológicas e saúde - e pelas agências de fomento à pesquisa, além de serem bastante difundidas entre pesquisadores de vários países (Vasconcelos, 2007).

Em virtude dessa realidade, acredita-se ser relevante pensar-se em projetos/ações que estimulem o exercício da construção da autoria/autonomia na universidade. Torna-se vital a reflexão sobre a prática do plágio entre os graduandos, professores em formação, visto ser esse um problema que tem tomado proporções críticas, pois roubar de si mesmo a possibilidade de um outro pensar, da inventividade, é um preço muito caro que o sujeito tem a pagar.

Entende-se aqui que as criações humanas se têm construído sobre a soma total de vozes anteriores, pois, como diz João Cabral de Melo Neto, "Um galo sozinho não tece uma manhã: / ele precisará sempre de outros galos. / De um que apanhe esse grito que ele / e o lance a outro; de um outro galo que apanhe o grito que um galo antes / e o lance a outro" (Melo Neto, 2005). É nesse sentido que todo texto mantém relação com outros textos, dos quais nasce e para os quais aponta. Todo dizer singular é atravessado por muitas vozes. Barthes (1992) convida também a pensar na intertextualidade quando propõe que se ouça o texto como "uma troca que espelha múltiplas vozes" (p. 73).

Assim, do ponto de vista da intertextualidade, que relaciona as mais diversas formas de linguagem e escrita, todo texto é um palimpsesto (Genette, 1982).4 Essa idéia leva à compreensão de que qualquer ato de escrita se dá na presença de outro. No hipertexto, essa noção de intertexto é atualizada nas expressões metafóricas como rede, trama e teia digitais, a partir das quais um texto se liga a infinitos outros textos, num ir e vir de significados plurais. O hipertexto abre caminhos para a leitura e a escrita intertextuais, uma vez que, por seus links, amplia possibilidades de intertextualidade a partir do diálogo entre textos, como lembra Koch, Bentes e Cavalcante (2007, p. 121): "[...] as co-incidências de fragmentos de textos se constroem pela inserção no texto da voz de um outro locutor [...]".

A intertextualidade, no hipertexto, implica a identificação, o reconhecimento de remissões a obras ou a textos, por meio de links que fazem conexões com outros textos, permitindo tecer caminhos para outras janelas. Está relacionada, ainda, à característica de não-fechamento do hipertexto digital, que possui permanente abertura do texto ao exterior, sempre em constante mutação e expansão, estimulando o leitor a iniciar a leitura de um novo texto sem ter concluído o anterior.

Considera-se, nessa perspectiva, que a interpretação de um texto não pode ser exclusivamente de quem o teceu, assim como quem escreve um texto não será nunca seu autor soberano: o discurso nunca é constituído de uma única voz; é polifônico, gerado por muitas vozes, muitos textos que se cruzam e se entrecruzam no espaço e no tempo; resultado que flui para dentro do leitor, passando a fazer parte da sua fala, de seus textos.

Essa é uma concepção que difere do plágio, aqui entendido como apropriação indevida de um texto ou parte dele, sem referência ao autor, portanto apresentado como sendo de autoria da pessoa que dele se apodera.

Desse modo, o diálogo que se tenta manter nesse texto, como um chamado à reflexão, não se apóia no império do autor, mas na preservação da sua intelectualidade; na autoria que "[...] se realiza toda vez que o produtor da linguagem se representa na origem, produzindo um texto com unidade, coerência, progressão, não-contradição e fim" (Orlandi, 2004, p. 69).

Nesse sentido, esta discussão volta-se para o espaço educacional e suas condições de fomento à criação, à produção, à autonomia do sujeito/leitor para transformar-se num autor/co-autor, entendendo que "o sujeito só se faz autor se o que ele produz for interpretável" (idem, p. 70).

Destaca-se, nesse contexto, o espaço acadêmico, onde, à revelia do professor - "no final do semestre cheguei a fazer um trabalho que 90% dele era cópia e tirei 9,5" confessa um graduando com risos, em entrevista -, a cópia de textos de outrem, isto é, o plágio, tornou-se prática constante e um dos motivos expostos pelos graduandos é a falta de tempo pelo acúmulo de atividades exigidas pelos professores. Sobre essa prática, explica Schneider (1990):

No sentido moral, o plágio designa um comportamento refletido que visa o emprego dos esforços alheios e a apropriação fraudulenta dos resultados intelectuais de seu trabalho. Em seu sentido estrito, o plágio se distingue da criptomnésia, esquecimento inconsciente das fontes, ou da influência involuntária, pelo caráter consciente do empréstimo e da omissão das fontes. É desonesto plagiar. O plagiário sabe que o que faz não se faz. (p. 47-48)

Entende-se que é nesse sentido que vem ocorrendo o ato de copiar no espaço acadêmico. Assim, em detrimento da construção do conhecimento que seria proporcionada pelo ato de pesquisa, com finalidade e objetivos, os graduandos, agora mais estimulados pela facilidade de transitar na tela em busca de informação, terminam por cometer, de acordo com Garschagen (s.d.), três tipos de plágio:

plágio integral - a transcrição sem citação da fonte de um texto completo;
plágio parcial - cópia de algumas frases ou parágrafos de diversas fontes diferentes, para dificultar a identificação;
plágio conceitual - apropriação de um ou vários conceitos, ou de uma teoria, que o aluno apresenta como se fosse seu.
A prática de plagiar existe há muito tempo, bem antes da internet; mas com ela esse ato torna-se uma possibilidade aberta ao infinito. O fato é que a praticidade, a economia e a velocidade que os textos digitais oferecem - e que deveriam estimular um pensar diferenciado, uma sede de saber, em busca de novos conhecimentos - têm contribuído para potencializar essa ação dentro da universidade, quando ao aluno é proposto construir textos como resumo, resenha, artigos, entre outros. O transitar na constante busca de informações na internet tem-se convertido na compulsão do simples clicar desordenadamente; o graduando tem revelado um agir impulsivo, de movimentos impensados, sem a necessária sistematização que deve estar fundamentada em objetivos de busca no processo de aprendizagem, relacionando ética, estética e técnica. Como explicam Blattmann e Fragoso:

Como linha mestra para criar e manter a sintonia entre os elos está o uso de ética, estética e técnica. Na ética, ao observar os critérios de direitos autorais, conhecer as normas de editoras e, principalmente, respeitar as políticas de privacidade. A estética une o belo e a harmonia. Enquanto a técnica introduz a prática, a teoria e aplicação de procedimentos e recursos disponíveis. (2003, p. 62-63)

Acredita-se que as experiências vivenciadas com/no texto digital devam ser conduzidas dentro da universidade de modo que os professores, ao contrário de ignorar a apropriação/expropriação de textos, que acontece com muita freqüência entre os graduandos, possam implementar ações que venham a convergir para um novo paradigma no aprendizado e, assim, convidem o sujeito aprendente à participação num processo interativo, ético, com uma dimensão estética que já é própria da linguagem e da humanidade.

Nesse processo, ele precisa ser ativo, ultrapassar a fronteiras do transmitido, fugir das margens da timidez, enfim, gerar autonomia no processo de comunicação e de aprendizagem, o que o permitirá desenvolver seu senso de criatividade e mergulhar no espaço virtual infinito que é a imaginação.

Pode parecer, no entanto, que não há aspectos novos a serem tratados a respeito dessa temática. Mas é fato que essa discussão sempre se impõe e se descreve no cenário educacional por novos pontos de vista, uma vez que a história não gagueja nem caduca, mas renova-se. Ademais, "O novo não está no que é dito, mas no acontecimento de sua volta" (Foucault, 2005, p. 26). Então, a questão da formação do sujeito leitor/produtor de texto, com autonomia para lidar e apropriar-se do conhecimento, sempre preterida no espaço escolar, da educação básica à universidade, sempre se apresenta com vestimentas multifacetadas, olhares diversificados, diferentes vertentes, gerando sentimento de eterno recomeço.



A construção do sujeito leitor/autor na escola

É que agora sinto necessidade de palavras - e é novo para mim o que escrevo, porque minha verdadeira palavra foi até agora intocada.

Lispector, 1980, p. 10

Voltando o olhar para a maneira como a escola tem tratado a leitura e a escrita, e o modo pelo qual essas práticas estão postas na sociedade industrializada, informatizada, midiatizada, percebe-se a distância enorme e bastante inquietante entre essas margens, e o quanto a escola, com suas pseudo-atividades de leitura não reflexiva e desconectada com a vida, cassou a autoridade do leitor/produtor de textos.

A leitura escolar é artificial, praticada por meios de texto fabricados para se fazer ler, enquanto a leitura social é autêntica, praticada em situações onde o leitor sabe por que ele precisa ler. A leitura escolar é arcaica, veículo das representações do mundo que estão ultrapassadas, enquanto a leitura social se prende à atualidade, à realidade motriz do mundo contemporâneo. A leitura escolar é uma leitura congelada, ritualizada, repetitiva, que impõe a todo mundo as mesmas maneiras de se ler [...], ao passo que a leitura praticada na sociedade é uma leitura individual, visual, rápida, onde cada qual pode ler como quiser e o que quiser em função de seus interesses próprios e do tempo de que dispõe. (Chartier, 1994, p. 155)

Então compreende-se que a escola apenas forjou leitores e produtores de textos, nas bases de uma leiturização (Senna, 2000) de efeitos paradoxais, pois, em vez de contribuir para a formação de sujeitos da pesquisa que tomam a palavra de uma posição autorizada, passam a seres apáticos, reprodutores de saberes produzidos por outrem, isto é, fracassados intelectualmente, plagiadores. No pensamento de alguns sujeitos envolvidos na pesquisa, a escola tem sido conivente com essa situação:

Fomos acostumados desde as séries iniciais a fazer os nossos trabalhos copiando na íntegra textos de livros e enciclopédias, e isso sempre foi aceitável pelos nossos professores. Entramos na universidade ainda com essa consciência reduzida, motivada pela cultura da cópia, que nos foi pregada durante toda a vida escolar, e nesse ambiente entramos em contato com outro meio da pesquisa ainda mais dinâmico e rápido que os livros, a internet. E é no contato com esse novo artifício que nos deslumbramos com as múltiplas possibilidades e a facilidade que ela nos proporciona e é nesse momento que muitos estudantes acadêmicos fazem o uso errôneo dessa tecnologia. (MM)

Em contrapartida, o contexto em que vivemos exige a formação de um aluno que, distando do lugar comum, seja sujeito-autor atuante, crítico, autônomo e interventor, capaz de, a partir da sua autoria, interpretar e analisar a realidade, retirando-se da condição de sujeito acomodado e reprodutor de modelos textuais para um sujeito capaz e consciente do seu dizer/escrever. Para isso, segundo Orlandi (2001), a escola deve engendrar práticas que possam desenvolver no sujeito aprendente os mecanismos que entram em jogo no momento em que ele escreve, quais sejam:

a) Mecanismos do domínio do processo discursivo, no qual ele se constitui como autor.

b) Mecanismos do domínio dos processos textuais nos quais ele marca sua prática de autor. (p. 80)

Se por muito tempo a escola privilegiava a transmissão dos conhecimentos adquiridos por gerações passadas e treinava o aluno para submeter-se à autoridade do professor, no contexto atual, em que o professor não é mais detentor do saber e da informação nem alunos podem ser meros receptores de conteúdos - já que as informações, principalmente na internet, estão ao alcance de todos, numa relação que se dá na forma de comunicação direta e transversal "todos-todos" (Lévy, 1996, p. 112) -, urge a quebra de paradigmas e a mudança da postura pedagógica autoritária para uma abertura a outros possíveis, que conduzam o sujeito-aprendente na busca da construção de novos saberes e conhecimentos.

Não obstante, percebe-se que as propostas de produção sempre foram (e ainda são!) transformadas, pela lógica escolar, em textos para serem corrigidos para uma nota e não para socialização do conhecimento e divulgação científica. Portanto, no espaço e no tempo, a escola distanciou-se do objetivo de formar autores, no sentido já explicitado; isto é, sujeitos autônomos, que se responsabilizem pelo seu dizer/escrever; que possuam autoria; um "eu" que se assume como produtor de linguagem e, nesse sentido, confere voz à sua identidade.

Mas a construção do autor não se dá sem a formação do leitor, visto que sua competência discursiva depende das histórias de leitura do sujeito, a fim de que se constitua, de fato, co-autor de textos lidos e produzidos. E, na escola, a leitura sempre figurou como tarefa obrigatória, mecânica, que estimulava o aluno à cópia de textos dos livros (reprodução não autorizada, apropriação indevida, plágio), já que as práticas de ler/escrever não propiciavam ao aluno refletir sobre o que liam/escreviam nem aprender a decidir por si mesmo, visto que seguiam sempre um modelo de leitura/escrita preestabelecido.

Na escola [...] o trabalho com a leitura remete-se ao uso do texto como pretexto para o estudo da gramática e à concepção redutora de texto que o vê como uma somatória de frases. A esse ponto de vista acresce-se uma visão da leitura como decodificação de conteúdos que deverão ser avaliados pelo professor. (Matencio, 2002, p. 38-39)

A escola, na maioria das vezes, tem pensado a escrita como prática estritamente escolar, cristalizada, sempre reforçada pelos exercícios escolares e provas que enfatizam a memorização, seqüência e hierarquização de conteúdos, modelos, receitas. E é fato que a prática pedagógica sempre repetitiva e reprodutora adotada pela escola ocasionou a baixa auto-estima do sujeito/leitor/produtor de textos e a prática da escrita reduziu-se ao ato pedagógico de reproduzir, copiar, negando ao aluno a possibilidade de assumir-se como sujeito-autor: dá-se a repetição do dito lateral dos livros e do mestre! Daí, vale a pena lembrar Orlandi (2001), quando diz que "a escola não forma escritores; o escritor se faz na vida, sem receita [...] a escola não ultrapassa a formação da média; o essencial não é aprendido na escola; escola e criação não vivem juntas etc." (p. 75).

Na verdade, quando se fala em produção de texto na escola, reporta-se aqui à formação do autor e não à formação do escritor, pois esse não é um compromisso da escola, embora o autor seja formado não apenas na escola, mas fora dos seus limites também, o que significa que a escola é um espaço muito proveitoso no que se refere à contribuição que pode dar na formação do sujeito-autor, mas não é lá o único contexto em que a constituição da autoria se dá. Com relação à formação do autor na escola, Orlandi (2001) declara ainda que:

[...] a escola é necessária, embora não suficiente, uma vez que a relação com o fora da escola também constitui a experiência da autoria. De toda forma, a escola, enquanto lugar de reflexão, é um lugar fundamental para a elaboração dessa experiência, a da autoria, na relação com a linguagem. (p. 82)

Ocorre que, mesmo fora da escola, os sujeitos-leitores terminam por internalizar os rituais coercitivos da leitura e da escrita nela vivenciados, vincados que são pelas experiências construídas nas suas andanças discursivas pelos caminhos da escola.

Então, da educação básica à universidade, quando desafiados a produzir textos, trilham em busca de "vozes" que indiquem caminhos e/ou confirmem suas opções, mas terminam por apropriar-se de uma forma de dizer/escrever na qual não se dão ao direito e ao prazer de escolher, selecionar, organizar e decidir sobre o conteúdo temático a ser tecido. Não imprimem no texto um estilo pessoal; esvazia-o da sua existência concreta.

Ademais, é relevante salientar que, para além das questões éticas do plágio, a aprendizagem resultante de um processo que não reivindica "a prática da linguagem como fio condutor do processo de ensino-aprendizagem" (Geraldi, 1997, p. 192) ou é superficial ou é inexistente; e o sujeito vai encolhendo-se por entre as margens do cruel, grotesco e risível sistema excludente que está sempre a arremessá-lo para os bastidores do currículo - o lado encoberto, oculto, as zonas não confrontadas dos dilemas, das incertezas - e, conseqüentemente, da sociedade.



A constituição da autoria: um exercício de autonomia e consciência do outro

O menino aprendeu a usar as palavras.

Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.

E começou a fazer peraltagens.

Barros, 2001, p. 13

Os versos de Barros sugerem que, para constituir autores, as peraltagens com as palavras são essenciais desde o primeiro momento em que o menino ou a menina começam a sentar-se nos bancos da escola. Mas se nas séries da educação básica o exercício da produção de texto não é potencializado, na universidade esse espaço de construção da escrita como possibilidade da constituição da autoria é ainda extremamente limitado. No entanto, é urgente criar um espaço nos entre-lugares da academia - onde geralmente se dão os embates e as ambivalências - que engendre a constituição da autoria, pois aí está o tripé que sustentará a escrita no espaço acadêmico, no qual poderão e deverão se estabelecer as relações necessárias à construção de textos pelo aprendente, este como sujeito do desejo que, ao enxergar-se como autor, institui, no mesmo ato, o leitor.

Voltando à instigante pergunta de Foucault (1992), "o que é um autor?", ele mesmo responde que a noção de autor "constitui o momento forte da individualização na história das idéias, dos conhecimentos, das literaturas, na história da filosofia também e na das ciências" (p. 33). Dialogando com Bakhtin (2003), entende-se então que o autor é o sujeito capaz de criar discursos com sentido, a partir da tessitura de palavras e teorias construídas no seu meio social e cultural.

Compreende-se que é pelo ato criador da escrita que o sujeito se insere nesse meio sociocultural; pelo ato da escrita, ele autoriza-se a examinar, avaliar, expressar ou silenciar; nesse silêncio (o não-dito), ele abre espaço para a presença do outro, seu interlocutor, pois "o autor não realiza jamais o fechamento completo do texto, visto que aparecem [...] ao longo do texto pontos de deriva possíveis, oferecendo lugar à interpretação, ao equívoco, ao trabalho da história da língua" (Orlandi, 2004, p. 77).

Ao mesmo tempo em que o sujeito escreve, tece o seu texto (tarefa árdua, mas necessária!), descobre seu método próprio de dizer e significar o mundo; nele, mostra-se, expõe-se à luz do seu próprio discurso; forja seu "eu", revela-se nas palavras: palavra e sujeito misturam-se. Dessa tarefa árdua e necessária, que é escrever, assim diz Lispector:

Olha, eu trabalhava e tive que descobrir meu método sozinha. Não tinha conhecido ninguém ainda. Me ocorriam idéias e eu sempre me dizia: "Tá bem. Amanhã de manhã eu escrevo". Sem perceber que, em mim, fundo e forma é uma coisa só. Já vem a frase feita. Enquanto eu deixava "para amanhã", continuava o desespero toda manhã diante do papel branco. E a idéia? Não tinha mais. Então eu resolvi tomar nota de tudo que me ocorria. (apud Perissé, s.d.)

Então, considera-se que o sujeito ao escrever inscreve-se também nas entrelinhas do seu texto, traça seu perfil na textura do seu dizer, a sua identidade; nele, fundo e forma confundem-se e fundem-se. Dessa maneira, seguindo as pegadas do ato de escrever do sujeito, poder-se-á percebê-lo no dito e no não-dito da sua escritura, em que deixa suas nuanças, suas marcas, constituindo-se como autor. No seu dizer, está a sua imagem-corpo, ali, no texto interposto: "[...] o sujeito está, de alguma forma, inscrito no texto que produz" (Orlandi, 2001, p. 76).

A autoria aqui é referida nas suas dimensões criativa, histórico-social e ético-política; como exercício de autonomia, possibilidade de autoprodução; pertencimento e responsabilidade por aquilo que se cria: há um "eu" que se revela produtor de linguagem (idem). Decerto a universidade ainda precisa construir esse espaço e o professor precisará aperceber-se dessa necessidade com certa urgência: "Bom, confesso que venho produzindo pouco ultimamente, pois nosso trabalho com produção de textos é menor" (JL).

Nessa perspectiva, cada vez que a universidade ignora a necessidade da viabilização de projetos que engendrem práticas de leitura/escrita com vistas à construção da autonomia do aluno para responder pelo que diz e pelo que escreve, leva-o à não-consciência do outro, à negação da autoria, da identidade do outro; e, conseqüentemente, a seu silenciamento como autor, forjando o plagiador que:

[...] cala a voz do outro que ele retoma [...], toma o lugar do outro indevidamente, intervém no movimento que faz a história, a trajetória dos sentidos (nega o percurso já feito) e nos processos de identificação (nega a identidade ao outro, e, em conseqüência, trapaceia com a própria). (Orlandi, 2004, p. 72)

De outra forma, entende-se que, ao mesmo tempo que se inscreve, o autor também se apaga, considerando que todo texto é reescrito no tempo da leitura e todos os discursos que são providos da função autor comportam a pluralidade de "eus" (Foucault, 1992).

A marca do autor-criador revela-se no que o sujeito produz e na forma como ele organiza sua fala e escrita num dado contexto. Seu texto vai sempre se constituir da tensão com outras vozes sociais. De acordo com Orlandi (2001),

Para que o sujeito se coloque como autor, ele tem de estabelecer uma relação com a exterioridade, ao mesmo tempo que se remete à sua própria interioridade: ele constrói assim sua identidade como autor. Isto é, ele aprende a assumir o papel de autor e aquilo que ele implica. (p. 78-79)

Em tempos de novos desdobramentos tecnológicos e sociais da escrita, a constituição da autoria é certamente redesenhada, ressignificada, implicando outras possibilidades sociais e cognitivas, revelando a emergência de que, pelo menos no espaço acadêmico - esse como potencializador de criatividade -, se engendrem novas possibilidades de exercício de autoria, porque, de acordo com Barthes (1992), é preciso que se faça do leitor não apenas um consumidor de textos, mas alguém que também produz.

Para tanto, faz-se necessária uma reconfiguração na forma como o graduando se torna sujeito da escrita ou como a ela se assujeita; que ele possa assumir uma nova posição diante da escrita: a de sujeito do conhecimento, que, ao participar intensamente, expondo suas idéias, possa também valorizar a produção intelectual do outro. Pois,

[...] no capital intelectual, o mérito de ser autêntico é diferenciado do de ser plagiador. Deve ser criada e estimulada uma cultura de respeito penetrada nas amplas esferas (pessoais, educacionais e profissionais) em identificar tanto a obra como o artista. Regra geral: leu, gostou, use e cite! (Blattmann & Fragoso, 2003, p. 61)

Ao falar de autoria, não se pode esquecer de que, no contexto da sociedade informática e na "era do conhecimento", têm ocorrido mudanças de paradigmas com relação a novos valores, novas organizações na educação e na sociedade, nas instâncias pessoal, social, política e educacional. Desse conjunto de transformações emerge um novo espaço de leitura/escrita que exige outras competências, relações, interações e papéis, propondo assim refletir sobre as concepções de autoria e autonomia: o hipertexto.

No contexto atual, o (hiper)texto configura-se como um espaço de leitura e escrita sem margens e sem fronteiras, que exige a revisão das estratégias de lidar com o escrito, constituindo-se num movimento que implica exercício de contínuo agir para a busca de novos saberes, exigindo posicionamento crítico, indagações e soluções para os desafios que incessantemente se apresentam.

Construído na interação texto-sujeitos, o hipertexto dialetiza a distinção entre texto de leitor e texto de escritor, bem como a subversão dessa relação. Co-enunciador, co-autor, o leitor pode decidir o rumo de sua leitura, recriar seu texto individual, elegendo links entre os vários disponíveis.

Xavier (2004) traz um conceito de hipertexto como tecnologia de leitura e escrita que medeia as relações do sujeito na sociedade da informação:

Na esteira da leitura do mundo pela palavra, vemos emergir uma tecnologia de linguagem cujo espaço de apreensão de sentido não é apenas composto por palavras, mas, junto com elas, encontramos sons, gráficos e diagramas, todos lançados sobre uma mesma superfície perceptual, amalgamados uns sobre os outros formando um todo significativo [...]. É assim o hipertexto. Com ele, ler o mundo tornou-se virtualmente possível, haja vista que sua natureza imaterial o faz ubíquo por permitir que seja acessado em qualquer parte do planeta, a qualquer hora do dia e por mais de um leitor simultaneamente. (p. 171)

A construção hipertextual presentifica os textos com os quais o autor dialoga, que, em uma obra impressa, geralmente estão apenas intuídos. Assim, na medida em que o hipertexto gera associações com outras leituras, nele a relação de intertextualidade é uma constante e concretiza-se na interação entre os vários textos de signos diferentes. Como enuncia Ramal (2002), "a idéia da intertextualidade permite pensar no diálogo entre épocas diferentes e entre diversos pontos de vista. Não se trata de negar o passado nas vozes do futuro, mas sim encontrar pontos de contato, plurivocidades que se enriqueçam mutuamente" (p. 126).

Nesse espaço o sujeito leitor é necessariamente chamado a estabelecer objetivos, tomar decisões, tecer por entre metáforas de rede, de rizomas, desenvolvendo estratégias de controle e regulamento do próprio conhecimento.

Assim sendo, o papel do sujeito-autor nesse contexto extrapola os muros da escola; deve estar relacionado ao papel que representa na sociedade em que está inserido. A autoria está relacionada ao "aprender a colocar-se": "Aprender a se colocar - aqui: representar - como autor é assumir, diante da instituição escolar e fora dela (nas outras instâncias institucionais) esse papel social, na sua relação com a linguagem; constituir-se e mostrar-se autor" (Orlandi, 2001, p. 79).

Urge então reconfigurar, dentro da academia, as concepções de pesquisa, leitura, produção e autoria; e, viabilizando mudanças mais profundas em atendimento a essas demandas tão urgentes, estimular criações na comunidade acadêmica que possam contribuir com os graduandos no desdobramento de vínculos motivadores do desenvolvimento intelectual, social e educacional. De acordo com Palacio (2006),

[...] o problema, evidentemente, não é novo, pois não se circunscreve ao âmbito telemático. Com efeito, ensinar a um jovem pesquisador como validar suas fontes, como avaliá-las, como buscar e identificar a informação confiável, é talvez uma das primeiras e mais importantes tarefas daqueles que se dedicam a formar recursos humanos nesta área. Se tais questões sempre estiveram colocadas e geravam preocupações com respeito à pesquisa conduzida em moldes "tradicionais", com mais força elas se colocam no âmbito da pesquisa on-line, com a manutenção de antigos problemas e o surgimento de novos. Não se pode, é claro, ensinar bom-senso e experiência, mas alguns balizadores podem ser estabelecidos, facilitando a tarefa de validação da informação disponibilizada.

Dessa forma, dada a possibilidade de acesso ao texto na internet e à sua modificação no ambiente digital, voltar o olhar para o problema do plágio na universidade torna-se ponto-chave, visto ser lá o lugar onde a produtividade e o conhecimento devem ser calcados na autoria/autonomia.



(In)Conclusões: muitos fios por tecer

Tudo acaba mas o que te escrevo continua. O que é bom, muito bom. O melhor ainda não foi escrito. O melhor está nas entrelinhas.

Lispector, 1980, p. 96

Compreende-se, a partir do exposto, que a discussão sobre a constituição do autor no espaço acadêmico continua sempre aberta, já que um fio puxa o outro; fios conflituosos, porquanto é também conflituoso e complexo o problema da autoria na universidade: construir práticas em que a voz e a função do autor se concretizem é, nos tempos atuais, com tantos textos disponibilizados pela internet, um desafio que se impõe e se propõe aos professores.

Por conta disso, há mesmo urgência em implementar ações/modificações com relação à prática de produção de texto na universidade, a fim de que essas produções, cumprindo sua função social, possam ser socializadas, na forma de comunicações em congressos, seminários; possam reverter-se em artigos para publicação em periódicos especializados ou em livros. Para os graduandos, está clara a necessidade que têm de ser reconhecidos pela competência discursiva, pela capacidade de produção do conhecimento, como escreve um dos graduandos, no fórum de discussão sobre leitura e escrita:

Uma coisa realmente deve ficar claro, os estudantes da universidade fazem o plágio conscientemente. Sabem que não devem, mas são seduzidos pela facilidade em conseguir um bom trabalho com o menor esforço. Porém, nada se compara ao prazer de se produzir um trabalho e ser reconhecido por aquilo que você foi capaz de fazer. Isso não tem preço!!! (CS)

Nesse sentido, a internet, em vez der ser vislumbrada apenas como meio facilitador do plágio, poderá constituir-se em lócus para que a inventividade, a iniciativa, a reflexão e a construção da identidade do graduando como autor possam ser exploradas, incentivando-o a construir situações em que se instaure a produção do conhecimento e, conseqüentemente, o processo de autoria, no qual o sujeito vai contribuir com suas palavras; sua voz ressoará no texto - "dizer" é "ser" - e, pela atividade da linguagem, assumirá, assim, uma posição no contexto socioistórico.

Que nesse contexto, ao participar das situações concretas de comunicação, possa tomar consciência da palavra do outro pelo reconhecimento do que é produzir textos. Nas palavras de Vygotsky, "somos conscientes de nós mesmos porque somos conscientes dos outros e somos conscientes dos outros porque em nossa relação conosco mesmos somos iguais aos outros em sua relação conosco" (apud Freitas, 1997, p. 316).

Sem a pretensão de fechar a discussão, vale dizer que, em meio a essa movência de textos, intertextos, hipertextos, é preciso que a universidade passe a contribuir para que do seu âmago possam emergir sujeitos autônomos, seres da linguagem, cientes do lugar múltiplo, instável e provisório que ocupam na contemporaneidade. Que saibam mover-se nesse mundo (autor, leitor, texto/hipertexto) - que se revela e é desvelado pela palavra escrita - veiculando seus saberes/conhecimentos, produzindo sentidos, reinventando-se... Pois há um caminho/labirinto a cada manhã.

OBDÁLIA FERRAZ, doutoranda em educação pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), é professora do curso de letras da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), na qual desenvolve, em parceria com duas bolsistas (Programa de Iniciação Científica - PICIN), a pesquisa "Leitura e escrita por entre as malhas da rede: possibilidades de constituição de autoria/co-autoria". Publicações recentes: "Ler e escrever nos labirintos hipertextuais" (Educação e Contemporaneidade, v. 14, n. 23, p. 51-62, jan./jun. 2005); "Nas armadilhas das trilhas hipertextuais: que lugar ocupa o aluno de letras como autor do seu dizer?" (In: CONGRESSO DE LEITURA DO BRASIL, 16., 2007, Campinas. Anais... Disponível em: . Acesso em: 30 jun. 2008); "O sujeito que tece/interage pelas malhas da rede digital" (In: ENCONTRO DE PESQUISA EDUCACIONAL DO NORTE E NORDESTE, 18., 2007, Maceió. Anais... Maceió: UFAL, 2007. 1 CD-ROM). Pesquisa de doutorado em andamento: "A constituição da autoria no cenário acadêmico: que práxis pedagógica norteia a produção textual na universidade?". E-mail: beda_ferraz@yahoo.com.br
1 Obra de autoria do Critical Art Ensemble, grupo de cinco artistas cujos trabalhos discutem a relação entre arte, tecnologia e política, além de promover, atualmente, debate sobre as estratégias obscuras utilizadas pela indústria da biotecnologia, cujo poder de transformação social é tão imenso mas que, no entanto, carece de discussões abertas sobre o assunto.
2 Rede de nós de imagens, sons ou textos, cuja configuração permite uma leitura não-linear e inter-relacionada (Lévy, 1993).
3 Essa declaração - como outras falas/escritas de graduandos envolvidos no estudo - foi postada num chat de discussão sobre plágio e está transcrita, reproduzindo as características próprias da comunicação síncrona no ambiente on-line, como a falta de acentuação das palavras ou o uso de abreviações.
4 O autor, no livro Palimpsestes, explica que o uso de escrever-se em pergaminhos fez com que o couro de animais utilizado para a escrita fosse muitas vezes reaproveitado, apagando-se a escrita antiga para sobre ela colocar-se a nova escritura. Era o palimpsesto, no qual a nova escritura recobrindo a escritura anterior deixava entrever os traços da primeira. Daí vem a denominação palimpsesto para os textos escritos em cima de outros, retomando-os e revelando-os nessa retomada.

Rebeldia e democracia na escola*


Reinaldo Matias Fleuri
Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Ciências da Educação


Introdução
A luta contra o autoritarismo e pela construção de processos democráticos na escola tem sido um dos principais objetivos de minha prática pedagógica (Fleuri, 2001). Entretanto, em muitas ocasiões, percebi que as tentativas de promover a participação ativa de estudantes no processo de planejamento, execução e avaliação do trabalho educativo no contexto escolar redundavam em reconfigurações de estratégias de sujeição, de hierarquização e de exclusão entre os estudantes. A partir dos anos de 1990, busquei compreender como e por que se constituem tais dispositivos de sujeição. Era necessário desconstruir tais dispositivos para sustentar iniciativas de democratização das relações pedagógicas. Encontrei em Michel Foucault indicações teóricas para compreender como funciona o poder disciplinar na escola. E isso permitiu entrever a possibilidade de resistência, que se exprime, por vezes, em ações de rebeldia individual ou coletiva. De modo particular, procurei entender como algumas práticas de transgressão realizadas por estudantes na escola são tradicionalmente transformadas em delinqüência e, com isso, subjugadas ou banidas. Em contrapartida, tentei entender de que forma, paradoxalmente, as iniciativas identificadas como "indisciplina" podem ser potencializadas como fatores de emancipação e de construção da democracia na escola.

Compreendi que, para o educador capaz de problematizar e dialogar, a rebeldia dos indisciplinados pode ser justamente um dos desafios que instigam a luta pedagógica constante, por articular criativa e prazerosamente interesses pessoais e coletivos corriqueiramente negados pelo sistema escolar. No âmbito da escola, as práticas de transgressão podem revelar seu potencial revolucionário, constituindo as bases para processos educativos que superem as relações de saber-poder disciplinar, na medida em que forem assumidas coletivamente (consolidando relações de reciprocidade e solidariedade) e ativamente (cultivando a diversidade de iniciativas e interações). E, para potenciar a rede viva de solidariedade, criatividade, liberdade e organização cultivada no cotidiano escolar, é preciso desvencilhá-la do caráter de transgressão e delinqüência que lhe é impingido pelo sistema examinatório de vigilância e sanção, desenvolvendo-se dispositivos de problematização, diálogo e cooperação entre os participantes do processo educacional.

Este artigo retoma sumariamente a explicação formulada por Michel Foucault das relações disciplinares de poder para indicar como os processos de resistência se podem configurar, ambivalentemente, como delinqüência ou rebeldia, como consolidação ou contestação da sujeição. Indica que os dispositivos de sujeição disciplinar estabelecem uma perspectiva unidirecional, monofocal, unidimensional e monocultural nas interações que as pessoas estabelecem entre si. Enuncia a necessidade de compreender e assumir a complexidade e a interculturalidade das relações educativas, para construir a democracia na escola. E indica, por fim, elementos das propostas pedagógicas de Paulo Freire e de Céléstin Freinet que apontam para a superação dos dispositivos disciplinares. Justamente porque promovem o reconhecimento e a potencialização da relação entre os diferentes sujeitos e entre seus respectivos contextos, favorecendo o desenvolvimento de infinitas e fluidas singularidades, produzindo os múltiplos e ambivalentes significados que tecem a trama viva do processo democrático na escola.



Relações disciplinares de poder

Michel Foucault (1977) chama de "disciplinas" aos métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo e a sujeição constante de suas atividades. Mas não são métodos repressivos. Porque, em vez de reduzir as forças e embotar as capacidades do indivíduo, a disciplina potencializa suas energias e aprimora suas aptidões, tornando-as úteis e produtivas. A disciplina adestra os indivíduos, articulando em sua atividade duas características: docilidade e produtividade.

O conjunto dessas estratégias de controle social que incidem sobre o corpo das pessoas configura o "poder disciplinar". Este se constitui na medida em que distribui os indivíduos no espaço, estabelece mecanismos de controle da sua atividade, programa a evolução dos processos e articula coletivamente as atividades individuais. Para isso, utiliza recursos coercitivos como vigilância, sanções e exames.

A disciplina distribui os indivíduos no espaço. A delimitação e a organização dos espaços no interior da instituição permitem o controle da localização e da circulação dos indivíduos. O espaço disciplinar é "analítico", porque é subdividido em compartimentos cujas funções são predefinidas. Isso permite "analisar" e controlar "automaticamente" as atividades que os indivíduos realizam. A determinação de lugares atende à necessidade não só de vigiar e de romper as comunicações perigosas, mas também de criar um espaço onde o trabalho dos indivíduos pode ser mais bem utilizado e controlado.

A subdivisão e a seriação do espaço permitem simultaneamente dois tipos de controle: por um lado, possibilita o controle das atividades de cada indivíduo; por outro, a ordenação do espaço permite o controle sobre o conjunto dos indivíduos, estabelecendo uma chave geral de correlação entre as pessoas que atuam simultaneamente no mesmo local.

A organização do espaço em celas, lugares e fileiras assume uma dimensão real e, ao mesmo tempo, ideal. De um lado, determina-se a disposição dos edifícios, das salas e dos móveis. De outro, essa arquitetura determina uma hierarquia entre as pessoas e entre os objetos. É o que foi denominado quadros vivos. O quadro é um processo de saber, ao permitir classificar e verificar relações. E uma técnica de poder, porque permite controlar um conjunto de indivíduos.

Numa instituição disciplinar, o controle das atividades dos indivíduos faz-se também mediante o condicionamento induzido pelo horário. Com o ritmo coletivo e obrigatório, imposto do exterior pelo horário, a disciplina realiza uma elaboração temporal do ato individual que busca tornar a atividade humana cada vez mais eficiente. A disciplina requer esforço do indivíduo para que incorpore procedimentos precisos. Mas isso não significa que a aprendizagem disciplinar seja repressiva ou violenta. Não é violenta, porque respeita as condições objetivas e naturais do corpo. Não é repressiva, porque, pelo contrário, otimiza o desenvolvimento das potencialidades do indivíduo. Aliás, a elaboração dos atos baseia-se no estudo minucioso do corpo, assim como dos instrumentos manipulados, de modo que estabeleça uma correlação ótima entre corpo e objeto. Seu objetivo é obter o melhor resultado com o menor desgaste possível. Nisso reside a eficiência da disciplina.

As disciplinas esquadrinham o espaço, decompõem e recompõem as atividades. Mas também são mecanismos que capitalizam o tempo e as energias dos indivíduos, de maneira que sejam susceptíveis de utilização e controle. E isso por quatro processos: primeiro, "divide-se a duração em segmentos" sucessivos ou paralelos, cada um devendo chegar a termo específico. Segundo, as seqüências são organizadas como sucessão de elementos simples, combinados conforme complexidade crescente. Terceiro, os "segmentos temporais são finalizados por uma prova". Quarto, estabelecem-se "séries temporais diferenciadas", de tal forma que se prescreve a cada indivíduo, "de acordo com seu nível, sua antigüidade, seu posto, os exercícios que lhe convêm [...]. De maneira que cada indivíduo se encontra preso numa série temporal, que define especificamente seu nível ou sua categoria" (Foucault, 1977, p. 143-144).

Tais mecanismos, que garantem a formação evolutiva de indivíduos diferenciados, constituem o exercício. Este é entendido como "a técnica pela qual se impõe aos corpos tarefas ao mesmo tempo repetitivas e diferentes, mas sempre graduadas" (idem, p. 145-146). O exercício - característica das práticas militares, religiosas, universitárias - é assimilado na prática escolar pelo programa de ensino, que acompanha a criança até o termo de sua educação e implica exercícios de complexidade crescente, de ano em ano, de mês em mês.

Tanto no exército quanto na fábrica, a força da ação conjunta é resultado da cooperação entre as forças elementares dos indivíduos que a compõem. Constitui-se como um aparelho, em que o indivíduo se torna um elemento que se pode movimentar e articular com os outros. Da mesma forma, a série cronológica de uns deve ajustar-se ao tempo dos outros, de modo que as forças individuais sejam aproveitadas ao máximo e combinadas num resultado ótimo. Essa meticulosa combinação das forças exige um sistema preciso de comando, baseado em sinais definidos que provoquem imediatamente o comportamento desejado. Tais processos se realizam na tática.

A disciplina constitui-se, portanto, num conjunto de dispositivos de poder. Mediante esquadrinhamento do ambiente, compõe um quadro vivo que identifica e classifica os indivíduos. Estabelece manobras, impondo um ritmo coletivo obrigatório e adestrando os gestos individuais. Institui exercícios, que induzem a aprendizagem progressiva e uma perpétua caracterização do indivíduo. Desenvolve táticas que combinam calculadamente as forças individuais, de modo que se aprimorem os resultados coletivos. Tais procedimentos constroem o indivíduo, articulando-o num coletivo.

Em resumo, pode-se dizer que a disciplina produz, a partir dos corpos que controla, quatro tipos de individualidade, ou antes uma individualidade dotada de quatro características: é celular (pelo jogo da repartição espacial), é orgânica (pela codificação das atividades), é genética (pela acumulação do tempo), é combinatória (pela composição das forças). E, para tanto, utiliza quatro grandes técnicas: constrói quadros; prescreve manobras; impõe exercícios; enfim, para realizar a combinação de forças, organiza táticas. (idem, p. 150)

O poder disciplinar identifica e articula indivíduos, tornando-os controláveis e produtivos. Mas seu sucesso e seu funcionamento são devidos "ao uso de instrumentos simples: o olhar hierárquico, a sanção normalizadora e sua combinação num procedimento que lhe é específico, o exame" (idem, p. 153).

O controle dos indivíduos numa instituição disciplinar é feito mediante sua observação constante. A organização do espaço deve proporcionar a vigilância constante dos subalternos pelos superiores.

O aparelho disciplinar perfeito capacitaria um único olhar a tudo ver permanentemente. [...] O Panóptico (modelo de prisão) é a figura arquitetural dessa composição.1 [...] Onde cada ator (seja o louco, o doente ou o operário) encontra-se isolado, perfeitamente individualizado e constantemente visível e vigiado. O dispositivo panóptico organiza unidades espaciais que permitem ver sem parar e reconhecer imediatamente. (idem, p. 156-157)

O princípio de vigilância do Panóptico é duplo: do lado do vigia, tudo ver sem ser visto; do lado do cativo, ser constantemente observado, sem poder controlar os atos de seu observador. Assim, de um lado, a sensação de ser constantemente vigiado induz o cativo ao comportamento de subserviência. Do outro, o observador pode identificar, comparar e classificar o comportamento dos indivíduos.

A vigilância, todavia, não se realiza apenas por força da arquitetura. Ela concretiza-se por meio de uma rede hierárquica de relações. O organograma de uma escola, por exemplo, é semelhante a uma pirâmide: diretor, supervisor, professores, estudantes, articulados com os auxiliares administrativos, pedagógicos e de manutenção. O sistema de vigilância estabelece relações de controle recíproco entre todos os indivíduos pertencentes a uma instituição disciplinar. Esse sistema de censura multilateral obriga todos a adaptarem-se às normas, mediante a aplicação hierarquizada de sanções.

Os sistemas disciplinares funcionam com base num mecanismo penal subliminar, que qualifica e reprime comportamentos que escapam aos grandes sistemas de castigo. A função do castigo na relação disciplinar é principalmente a de reduzir os desvios. Por isso, privilegiam-se as punições em forma de exercício: repetição da tarefa incorreta de modo que intensifique o aprendizado. "Castigar é exercitar" (idem, p. 161), mas a sanção disciplinar funciona como um sistema duplo de gratificação-castigo. As recompensas estimulam os recalcitrantes a adequar-se às normas, da mesma forma que o medo do castigo reforça o comportamento dos diligentes.

Esse mecanismo qualifica gradualmente os desempenhos entre dois pólos opostos, o do bem e o do mal. Na escola, todos os comportamentos reduzem-se às boas ou más notas. As sanções instituem um jogo sutil e gradativo de promoção e de reprovação. O sistema de notas recompensa, promovendo a graus superiores; pune, rebaixando. Isso produz uma classificação gradual do desempenho dos estudantes, ativando processos que funcionam como um jogo de forças entre os indivíduos, induzindo-os a comparações e à hierarquização entre si, assim como à exclusão dos violadores da norma.

Em suma, a arte de punir, segundo Foucault, traz "a penalidade perpétua que atravessa todos os pontos e controla todos os instantes das instituições disciplinares, compara, diferencia, hierarquiza, homogeneíza, exclui. Em uma palavra, normaliza" (idem, p. 163).

A sanção normalizadora e a vigilância hierárquica materializam-se num dos mecanismos-chave das instituições disciplinares e burocráticas: o exame.

O exame é uma combinação de técnicas da vigilância hierárquica com as da sanção normalizadora. É um ritual que permite qualificar, classificar e punir os indivíduos. Configura uma relação de saber e de poder ao mesmo tempo. De saber, porque possibilita aos examinadores conhecer e classificar os que se submetem à observação. De poder, porque exige dos subalternos adequação às normas. Os superiores, assim, controlam (observam e determinam) o comportamento subalterno e, ao mesmo tempo, induzem-no a adaptar-se às normas pela sanção classificatória.

O poder disciplinar é eficaz porque é invisível. Mas impõe aos súditos uma visibilidade obrigatória. É o fato de sempre poder ser visto que induz o indivíduo a se sujeitar à ordem disciplinar. E o exame é a técnica que permite observar com rigor os subalternos.

O exame está no centro dos processos que constituem o indivíduo como efeito e objeto de poder, como efeito e objeto de saber. É ele que, combinando vigilância hierárquica e sanção normalizadora, realiza as grandes funções disciplinares de repartição e classificação, de extração máxima das forças e do tempo, de acumulação genética contínua, de composição ótima das aptidões. Portanto, de fabricação da individualidade celular, orgânica, genética e combinatória. (idem, p. 171)

O exame articula e mobiliza os diferentes dispositivos constitutivos das relações de poder e de saber disciplinares. Mediante a aplicação sistemática desses mecanismos de controle, vai-se definindo a caracterização de cada aluno e a composição de um quadro classificatório que estabelece uma hierarquia de desempenhos individuais em cada turma, em cada série e em cada grau da unidade escolar que automaticamente sujeita todos ao controle impessoal e totalizador, constitutivo de saber e de poder.



Poder e resistência

Ao ver ainda hoje na escola características estruturais de séculos atrás, podemos nos perguntar: por que a escola continua a reproduzir esses mesmos mecanismos durante anos e anos, não obstante todas as tentativas de reformas?

Parece que os resultados das reformas acabam reforçando os mesmos problemas que as motivaram, como em um círculo vicioso. O pretenso fracasso da escola e de suas reformas - tal como questiona Foucault (1977, p. 239) a respeito da prisão - não faria parte de seu funcionamento?

Vários estudos sobre a escola a vêem como reprodução de um sistema maior, constituído pela organização econômico-política, particularmente o Estado, mesmo quando se identificam processos de resistência (Althusser, 1970; Giroux, 1983, entre outros). Foucault, porém, considera o poder como estratégia imanente às correlações de força, constituída pela in-teração instável e ambivalente de múltiplos agentes, que sustenta e ameaça cons-tantemente as fórmulas gerais de dominação (Foucault, 1988, p. 90). As mesmas correlações de força na prática escolar resultam em processos formadores de atitudes de docilidade e utilidade, assim como de iniciativas de criatividade e rebeldia.

Como é, então, que esse conflito entre disciplina e rebeldia se manifesta na vida da escola?

A vida quotidiana da escola parece, paradoxalmente, reproduzir dispositivos de poder e de resistência cuja lógica se reconstitui à medida que se reconfiguram suas estratégias e suas manifestações em contextos diferentes. A arquitetura e a rotina da escola, em diferentes formas, assumidas segundo os respectivos ambientes históricos e socioculturais, parecem incorporar normas e procedimentos combatidos em sucessivas tentativas de reforma do sistema escolar, mesmo com o impacto de profundas revoluções sociais. Todavia, ambivalentemente, nas fissuras das paredes divisórias e nos acasos que convulsionam as rotinas escolares, relações vivas e diferenciadas tentam emergir e vingar a qualquer momento.

Por exemplo: o espaço da sala de aula, encarado normalmente como uma cela de aula (Fleuri, 1990, p. 2), é ocupado pelos estudantes a partir de critérios e relações informais. Nas primeiras carteiras, em geral, os mais dedicados; atrás, os transgressores. Trata-se de um costume quase espontâneo que, embora por vezes se torne regra, reflete uma invisível rede de relações conflitante com as estratégias do disciplinamento escolar. Brandão (1986, p. 107-122) indica que, não obstante a divisão dos espaços e a imposição de rotinas, a vida real da sala de aula se processa como conflito entre o estabelecimento de normas e o desenvolvimento de estratégias individuais ou coletivas de transgressão. E que a trama viva de relações criada e recriada no quotidiano da sala de aula revela princípios e estratégias de resistência aos mecanismos disciplinares vigentes no sistema escolar.

Essa rede viva de relações surge e alastra-se clandestina, subterrânea e contínua, criando normas contrárias às regras institucionais e aos mecanismos disciplinares. Transpõe os limites e barreiras físico-espaciais. Estabelece ritmos e rotinas de ação coletiva invisíveis aos vigias. Desenvolve processos variados e conflitantes que interferem na formação da personalidade dos jovens. Articula acordos e cumplicidades subversivas ou paralelas à hierarquia burocrática. Tenta escapar à vigilância ou invertê-la. Desafia mecanismos de punição. Burla os exames.

A vitalidade transgressora instala-se como vírus na sala de aula, encontra um caldo fértil de cultura no recreio e pode contagiar todas as fímbrias do tecido escolar.

O recreio, do ponto de vista da ordem disciplinar, é um momento de repouso que permite aos estudantes recriar as energias necessárias para continuar a produzir nas atividades didáticas. Mas esse instante de liberdade é permitido apenas dentro de um espaço e durante um tempo suficientemente limitado para impedir o desenvolvimento de relações que escapem ao controle institucional.

Do ponto de vista dos estudantes, apresenta-se como uma lacuna na monotonia escolar. É uma brecha privilegiada, para serem realizados práticas prazerosas e criativas, uma vez que se pode sair da sala, encontrar-se com outros colegas, trocar notícias, estabelecer acordos, tomar lanche, ir ao banheiro, divertir-se... É nesse intervalo de afrouxamento disciplinar que se cultivam relações de acordos e conflitos autônomos entre os estudantes. É nesse espaço que surgem grupos e movimentos cujas atividades atravessam as hierarquias formais e criam canais de comunicação subliminar entre a escola e diferentes grupos da comunidade.

Também outros eventos, como reuniões de professores e responsáveis de estudantes, atividades do grêmio estudantil, reuniões sindicais de funcionários e professores, festas de diversos tipos, passeios, atividades extraclasse etc., se apresentam como espaços relativamente livres e, portanto, mais favoráveis ao desenvolvimento de relações criativas e solidárias.

Todavia, é preciso enfatizar que as práticas e as relações (que se desenvolvem seja em espaços formalmente mais controlados como na sala de aula, seja em espaços onde se permitem relações mais livres, como no recreio) são sempre contraditórias e paradoxais, na medida em que articulam dimensões e elementos opostos que se sustentam e se ameaçam mutuamente. Assim, as práticas de transgressão contrariam e, ao mesmo tempo, reforçam as medidas disciplinares: os estudantes, por exemplo, que circulam entre as carteiras ou não cumprem os horários só o fazem porque o espaço é esquadrinhado e horários são estabelecidos como normas. Ao serem punidos, tais comportamentos são qualificados como transgressão, reforçando o estabelecimento das normas. Mas tais medidas provocam novas reações, que podem gerar novas formas de resistência. Sujeição e transgressão, poder e resistência, portanto, só se configuram na relação recíproca, de combate e sustentação mútua.



Clandestinidade e rebeldia

Para Foucault (1988, p. 91-92), a codificação estratégica dos pontos de resistência que atravessam as estratificações sociais e as unidades individuais torna possível uma revolução. O principal desafio enfrentado por aqueles que ousam promover iniciativas e movimentos solidários autônomos no espaço escolar é escapar ao controle do sistema de normalização.

O submundo da prática escolar encontra-se prenhe de histórias e tradições jamais reconhecidas em nível de oficialidade (Manacorda, 1989, p. 210-211). No entanto, é justamente essa história clandestina que revela a origem da vitalidade que, conflitante com a disciplina escolar, traz um potencial transformador raramente enfatizado. O filme Sociedade dos poetas mortos2 narra a história de um grupo de estudantes que, num colégio tradicional, se reunia às escondidas numa caverna, de madrugada, para ler poesias, criar textos, fazer atividades proibidas pela instituição. Tais iniciativas de rebeldia, ao serem denunciadas e punidas mediante práticas examinatórias, têm um fim trágico de autodestruição dos próprios transgressores. Mantidas no nível da clandestinidade, as estratégias de transgressão não geram mudanças radicais.

Como, porém, liberar o potencial educativo das transgressões e articulá-lo em processos transformadores?

João Bernardo (1990, p. 317ss), ao analisar as formas de organização dos trabalhadores que surgem no sistema capitalista, distingue quatro tipos predominantes. Os três primeiros não levam a mudanças contextuais significativas. As formas de organização individuais e passivas incluem os modos práticos de poupar trabalho sem entrar em conflito aberto com o patronato (daí a passividade) e sem que essa atitude resulte de deliberação coletiva dos trabalhadores (daí seu caráter individual). Nas formas individuais e ativas, cada trabalhador arrisca o conflito aberto (o que significa seu caráter ativo), ainda que dissimulado, mas não atua de maneira conjunta e articulada com os outros companheiros (caráter individual). Nas formas coletivas e passivas, as ações são organizadas de modo coletivo, mas sob condução hierárquica de aparelhos burocráticos. Isso reforça a passividade dos trabalhadores, cuja ação acaba sendo dirigida de maneira centralizada e uniformizadora.

Já as formas de organização coletivas e ativas significam a articulação conjunta de diferentes iniciativas, em diferentes ritmos, que rompem a disciplina burocrática e manifestam a tendência prática ao controle dos processos coletivos. "Qualquer que seja o campo em que os conflitos se organizem de maneira coletiva e ativa, eles rompem, não negativamente, mas positivamente, com a disciplina capitalista, substituindo-a por um outro sistema de relacionamento social" (Bernardo, 1990, p. 323).

Assim, no âmbito da escola, as práticas de transgressão revelam seu potencial transformador, constituindo as bases para processos educativos democráticos que superem as relações de saber-poder disciplinar, na medida em que forem assumidas coletivamente (consolidando relações de reciprocidade e solidariedade) e ativamente (cultivando a diversidade de iniciativas e interações). E, para potenciar a rede viva de solidariedade, criatividade, liberdade e organização cultivada no cotidiano escolar, é preciso desvencilhá-la do caráter de transgressão e delinqüência que lhe é impingido pelo sistema examinatório de vigilância e sanção.

A construção desse mundo de delinqüentes no âmbito escolar torna-se pertinente à manutenção da ordem disciplinar. Não só porque segrega e exclui sistematicamente todo aquele que manifesta comportamento divergente, submetendo-o a vigilância constante e a punições exemplares, mas, sobretudo, porque impede o surgimento de formas amplas e manifestas de rebeldia, desvirtuando (ou transvertendo) iniciativas e movimentos de contestação procedentes (válidas) em formas fechadas e controláveis de transgressão. Assim, a manutenção sob controle penal de um meio transgressor, no âmbito da escola, torna-se um antídoto ao desenvolvimento de processos democráticos. A construção de processos participantes, dialógicos, críticos e cooperativos implica, pois, a desconstrução dos dispositivos disciplinares de poder.

Para desconstruir a sujeição

Para desconstruir as formas disciplinares de relação pedagógica que dificultam a construção de processos emancipatórios democráticos e cooperativos, é necessário, antes, saber por que nas organizações disciplinares as relações tendem a se configurar como processos de sujeição.

Na opinião de Foucault (1977, p. 167), o "olhar assegura a garra do poder que se exerce sobre os indivíduos". Trata-se do olhar que se exerce como vigilância. Um processo de observação constante do indivíduo que, por meio da análise e do esquadrinhamento do seu comportamento, segmenta-o em partes individualizáveis e comparáveis entre si, tornando-as redutíveis a um quadro classificatório. A classificação analítica serve como um filtro de percepção do outro que condiciona as atitudes e os comportamentos do sujeito observador, no sentido de exercer um domínio em relação ao sujeito observado. Ao mesmo tempo, a análise classificatória constitui-se, em nível de saber, num mecanismo de censura. Tende a determinar o âmbito e o tipo de respostas permitidas ao outro, invisibilizando ou excluindo toda forma de reação que escape aos parâmetros estabelecidos. Ao mesmo tempo, em nível de poder, forja instrumentos de coação. Mediante as sanções, reforça determinados comportamentos (mediante prêmios) e desencoraja outros (mediante castigos).

Esses mecanismos conjuminam-se no olhar examinatório, uma estratégia de relação que se materializa em múltiplas situações institucionais, desde os exames finais até os pequenos olhares de censura que povoam nossas relações cotidianas na escola. Vigilância, sanção e exame são recursos para o bom adestramento, isto é, para induzir os indivíduos a moldarem-se a relações disciplinares (individualizantes, classificatórias e hierarquizantes) em que se formam indivíduos produtivos, mas dóceis.

Assim, o olhar disciplinar, a vigilância hierárquica, torna-se uma relação de controle unidirecional, porque admite apenas o olhar para o outro como objeto, mas não admite o ser observado pelo outro. O tipo de olhar que funda a relação disciplinar exclui não apenas a reciprocidade do olhar; privilegia de tal maneira um tipo objetivista de percepção visual que reduz ou exclui outros possíveis significados do olhar, tal como o sentido de curiosidade, acolhimento, sedução ou valorização do outro.

Além disso, a vigilância hierárquica é um sistema de controle baseado principalmente no sentido da visão. Constitui, assim, uma estrutura de poder e de saber incapaz de incorporar as várias dimensões das interações humanas, constituídas pelas linguagens da audição, do sabor, do odor, do tato, favorecendo um tipo de relação, por assim dizer, unisensorial.

O olhar objetivista, enquanto olhar hierárquico ou "super-visão", é também uma relação uni-intencional, pois focaliza só o que está pontualmente posto e iluminado (e, por isso, é considerado positivo). É incapaz de considerar como reais (porque invisíveis a esse tipo de olhar) os vazios, os escuros, que possibilitam e constituem o espaço do inter, ou seja, das relações.

A analogia do poder-saber disciplinar (hierárquico, formal e positivo) como um tipo de olhar unidirecional, unisensorial e unifocal constitui-se numa base de interpretação, a partir da qual é possível conceber o salto de dimensão, para além das relações disciplinares na educação.

Tal ressignificação do processo educativo implica, em primeiro lugar, constituir relações de reciprocidade entre sujeitos educandos-educadores no processo de conhecimento. Superar a unidirecionalidade da relação de vigilância hierárquica - ou da "educação bancária" (Freire, 1974) - implica potencializar a reciprocidade da relação dialógica e cooperativa entre as pessoas. Ao mesmo tempo em que uma pessoa ensina, também aprende com o outro. Ao mesmo tempo em que um sujeito observa, também é observado pelo outro, influenciando e sendo influenciado em seus processos afetivos, intelectuais, decisórios, de ação, de interação, de comunicação. Na medida em que, no processo educativo, as pessoas constituem relações mútuas de saber e de poder, potencializam interações críticas e criativas, superando a sujeição produzida pelos dispositivos disciplinares.

Em segundo lugar, a reciprocidade dialógica só se constitui na medida em que se potencializam as múltiplas dimensões da existência e da comunicação humana. A interação humana não se reduz à comunicação visual, ao olhar e ser olhado. A interação constitui-se, na dimensão comunicacional, ao potencializar simultaneamente a reciprocidade das múltiplas formas e linguagens de comunicação verbal e corporal. E, nas dimensões afetivas e mentais, ao acolher e ser acolhido, ao oferecer e ao interpelar, ao compreender e ser compreendido. Pelo fato de utilizar, de modo simultâneo e articulado, diferentes linguagens, torna possível a reciprocidade na comunicação entre diferentes pessoas. O falar e o escutar podem parecer uma relação unidirecional entre um sujeito ativo e outro passivo, se se considerar apenas a dimensão da comunicação oral-auditiva. Mas, ao considerarem-se as múltiplas linguagens e dimensões comunicacionais, percebe-se que, aos potencializá-las, os diferentes interlocutores participam ativamente e reciprocamente da sustentação do contexto comunicativo. A comunicação, por ser multidimensional e complexa, é essencialmente dialógica.

Em terceiro lugar, a superação do dispositivo disciplinar do olhar unidirecional implica superar seu caráter unifocal. O professor, ao examinar o desempenho do estudante, focaliza e valoriza apenas aspectos relacionados a determinados objetivos preestabelecidos, ignorando todos os outros aspectos que compõem seu contexto. As manifestações diferentes do exigido são até mesmo condenadas como desviantes ou erradas. A relação dialógica, ao contrário, implica considerar os contextos constitutivos dos múltiplos significados desenvolvidos pelas ações e interações das pessoas. Torna-se necessário, para isso, desenvolver a capacidade de percepção e compreensão do contexto (Severi & Zanelli, 1990) e de seus processos de transformação. É a partir dos contextos sociais, subjetivos, intersubjetivos, históricos, culturais, ambientais que as ações se constituem e adquirem sentidos. "Sem contexto, palavras ou ações não têm qualquer significado" (Bateson, 1986, p. 23). Apreender o contexto requer um salto lógico, no sentido de identificar não apenas os objetos, mas simultaneamente suas inter-relações.

Reconhecer a multiplicidade de contextos (subjetivos, interpessoais, sociais, culturais, econômicos, políticos, ecológicos) desenvolvidos pela interação de diferentes sujeitos nas relações e nos processos educativos implica percebê-los e orientá-los segundo uma lógica (ou paradigma epistemológico) capaz de compreender a relação da unidade do conjunto com a diversidade de elementos que o constituem.

O entendimento da educação como um processo interativo, polissêmico, multidimensional, crítico, criativo remete-nos à perspectiva complexa formulada por Gregory Bateson, com sua teoria de mente (mind). Mente é uma "estrutura que coliga", "um padrão que conecta" diferentes seres e processos.

À luz da concepção de mente desenvolvida por Bateson, podemos entender: que o processo educativo é constituído por pessoas que interagem; que a interação é acionada pela diferença, sendo esta produzida pela iniciativa concomitante de múltiplos sujeitos; que a diferença codificada produz novas diferenças, em cadeias recursivas de informações, segundo padrões de conjunto que constituem a singularidade de cada sujeito em relação (idem, p. 99-100). A cultura, trama sistêmica de padrões de significados (Geertz, 1978) - produzida, sustentada, constantemente modificada pelas próprias pessoas em interação - configura os sentidos para cada ato, palavra ou informação elaborada pelas pessoas em relação.

Nesse sentido, a transformação dos dispositivos disciplinares de saber-poder e a instituição de processos educativos de caráter dialógico - como os que são propostos por Paulo Freire e Céléstin Freinet (Fleuri, 1996) - constitui um campo de aprendizagem de segundo nível, na medida em que implica desenvolver contextos educativos que permitam a articulação entre diferentes contextos subjetivos, sociais e culturais. Trata-se de compreender e construir processos educativos em que diferentes sujeitos constituem sua identidade, elaborando autonomia e consciência crítica na relação de reciprocidade (cooperativa e conflitual) com outros sujeitos, criando, sustentando e modificando contextos significantes que interagem dinamicamente com outros contextos, criando, sustentando e modificando metacontextos comunicacionais.

Tal concepção de educação traz a necessidade de repensar e ressignificar a concepção de educador. O processo educativo consiste na criação e no desenvolvimento de contextos educativos e não simplesmente na transmissão e assimilação disciplinar de informações especializadas. Ao educador compete, pois, a tarefa de propor e sustentar mediações pedagógicas. Ou seja, compete a ele propor estímulos (energia colateral) que ativem as diferenças entre os sujeitos e entre seus contextos (histórias, culturas, organizações sociais...), de modo que desencadeiem a elaboração e a circulação de informações (versões codificadas das diferenças e das transformações) que se articulem em diferentes níveis de organização (seja em âmbito subjetivo, intersubjetivo, coletivo, seja em níveis lógicos diferentes).

Educador, nesse sentido, é propriamente um sujeito que se insere num processo educativo e interage com outros sujeitos, dedicando particular atenção às relações e aos contextos que vão se criando, de modo que contribua para a explicitação e a elaboração dos sentidos (percepção, significado e direção) que os sujeitos em relação constroem e reconstroem. Nesses contextos, o currículo e a programação didática, mais do que um caráter lógico, terão uma função ecológica. Sua tarefa não será meramente configurar um referencial teórico para o repasse hierárquico e progressivo de informações. Sua competência será prever e preparar recursos capazes de ativar a elaboração e a circulação de informações entre sujeitos, de modo que se auto-organizem em relação de reciprocidade entre si e entre seus respectivos ambientes.

O processo educativo constitui-se, assim, simultaneamente, na perspectiva dos sujeitos singulares, como relação entre pessoas mediatizadas pelo mundo, como afirma Paulo Freire. Ao mesmo tempo, na dimensão contextual, configuram-se relações entre mundos (culturais, sociais, ambientais) que se transformam - ou se educam - reciprocamente, na medida em que são mediatizados pelas pessoas que interagem dialogicamente.

Perspectivas de construção da democracia nos processos educacionais

A construção de processos democráticos na escola implica justamente desenvolver dispositivos educacionais dialógicos que superem os mecanismos de sujeição disciplinar.

[...] em boa medida, todo o esforço, às vezes inteligente, outras desesperado, das pedagogias modernas, não quer mais do que aprender, com a sabedoria dos transgressores, os princípios e estratégias de relações entre as pessoas que tornem o domínio da norma escolar pelo menos suportável. (Brandão, 1986, p. 122)

Nessa perspectiva, Céléstin Freinet e Paulo Freire, entre outros educadores e teóricos da educação, codificam revolucionariamente as estratégias de resistência aos processos de saber-poder disciplinar nas práticas educativas. São dois educadores que, embora contemporâneos, atuaram em contextos sociais bastante diversos (França e Brasil). Freinet preocupou-se sobretudo com a educação escolar de crianças de 0 a 14 anos. Paulo Freire ocupou-se inicialmente de adultos nos chamados "círculos de cultura", que pretendiam justamente escapar à escolarização tradicional. Mas suas propostas apresentam pontos em comum. Ambos entendem que a educação não é politicamente neutra. Ambos recusam a manipulação do ser humano. Ambos acreditam que a ação pedagógica, apesar de todos os seus condicionamentos, seja fundamental para o processo de libertação humana e de transformação social.

Nessa direção, ambos dão a palavra ao povo, para falar de sua vida, como passo fundamental para o desenvolvimento da autonomia e para o engajamento na transformação do mundo. A "expressão livre" foi a grande descoberta de Freinet para dar a palavra à criança. Pelo tatear experimental e pela possibilidade de relatar as próprias vivências, as crianças desenvolvem sua autonomia, seu juízo crítico e sua responsabilidade. Para Paulo Freire, dizer a palavra é transformar o mundo, pois, ao dizer a própria palavra, as pessoas começam a construir conscientemente seus próprios caminhos.

Tanto Freinet quanto Freire defendem o diálogo e a cooperação entre sujeitos na busca de problematizar, compreender e transformar a realidade. Paulo Freire focaliza prioritariamente o trabalho educativo ligado à ação e à organização sociopolítica do mundo adulto. Freinet enfatiza a transformação do ambiente escolar mediante o desenvolvimento dos métodos ativos, da organização cooperativa e dos canais de comunicação com o meio natural e social.

Entre afinidades e diferenças, as propostas pedagógicas de Freinet e Freire complementam-se. Paulo Freire, em suas práticas iniciais de "conscientização", desenvolveu o método de investigação, codificação e decodificação temática (Freire, 1975, p. 89-141). Mas alertou sobre os perigos da tendência à mitificação de métodos e técnicas, à absolutização destas quando se perdem de vista as finalidades e os sujeitos a que estão ligadas. Por isso, enfatizou a necessidade de desenvolver o diálogo e a interação entre educadores-educandos no empenho de problematizar e de transformar o mundo. Complementarmente, Freinet, constatando que muitos professores militantes políticos adotavam na sala de aula métodos e técnicas de dominação totalmente em discordância com a sua opção ideológica de liberdade e solidariedade, salienta a importância da organização material técnica e pedagógica. Nesse sentido, a preocupação com a clareza política das finalidades do processo educativo, tão enfatizada por Freire, encontra nas técnicas propostas por Freinet grandes possibilidades de mediação com a prática de educação escolar.

A proposta de Freinet - que visa à formação de pessoas produtivas (tal como o poder disciplinar) mas criativas (contrariamente ao poder disciplinar, que condiciona as pessoas à submissão) - aponta formas de organização que rompem os mecanismos disciplinares.

A organização disciplinar do espaço (mediante a cerca, o quadriculamento, a fila, que transformam o coletivo num quadro vivo, totalmente observável e controlável) identifica-se com o auditorium-scriptorium da escola tradicional. Contra esse modelo funcional da escola, Freinet propõe que ela seja uma oficina de trabalho simultaneamente comunitária e especializada, que exige uma nova estrutura arquitetural. Nesta, prioriza-se o meio natural, ao qual se articulam os edifícios. Na escola primária, propõe-se um modulo arquitetural básico compondo uma sala comum, onde as crianças poderão reunir-se para os trabalhos coletivos, com oficinas internas especializadas e oficinas externas especializadas (jardim, horta, pomar e a criação de animais). Nesse espaço escolar, o controle das atividades tende a ser assumido pelos grupos de estudantes, em função de seus interesses e planos, subvertendo-se o mecanismo de vigilância hierárquica.

Também o controle disciplinar da atividade baseado no horário e no treinamento é superado na medida em que se oferecem às crianças possibilidades de trabalho e de cooperação de acordo com seus interesses e seus ritmos singulares (Freinet, 1973, p. 82). A superação da prática do exercício disciplinar (que capitaliza e classifica as energias do indivíduo de modo que se tornem utilizáveis e controláveis), assim como da organização tática da escola como um aparelho (que articula as atividades individuais mediante comandos padronizados), pode ser vislumbrada no trabalho pedagógico com o que Freinet chama de complexos de interesses. Estes são suscitados pelos contatos diretos com o meio ambiente, por meio das oficinas na escola e do conhecimento experimental dos estudantes. Entre as múltiplas motivações vitais, as crianças escolhem trabalhar alguns aspectos de maneira articulada com os colegas.

Na elaboração de um jornal (idem, p. 105-131), por exemplo, o grupo escolhe um dos textos produzidos por uma das crianças. A seguir identifica jogos, trabalhos, conhecimentos, atividades possíveis de serem elaborados. Cada um escolhe fazer o que mais lhe convier, traça um plano pessoal de trabalho e o articula com os dos colegas num plano geral. No desenvolvimento das atividades, cada um segue seu próprio ritmo e interage livremente com os colegas. Os trabalhos produzidos são apresentados, discutidos, divulgados.

Paulo Freire, por sua vez, desenvolve o processo de investigação temática:

Os temas se encontram, em última análise, de um lado, envolvidos; de outro, envolvendo as situações-limite, enquanto as tarefas em que eles implicam quando cumpridas constituem os atos-limite. Estes temas se chamam geradores porque, qualquer que seja a natureza da sua compreensão com a ação por eles provocada, contêm em si a possibilidade de desdobrar-se em outros tantos temas que, por sua vez, provocam novas tarefas que devem ser cumpridas. (Freire, 1975, p. 110)

Por isso, o tema que se coloca à discussão no contexto pedagógico foi chamado por Paulo Freire de tema gerador, uma vez que a abordagem de um tema gera a discussão de outros temas correlatos. Entretanto, "o tema gerador [...] só pode ser compreendido nas relações homem-mundo" (idem, p. 115). Daí que a explicitação do tema gerador deve focalizar o falar, o pensar e o agir das pessoas sobre sua realidade. Por isso mesmo, a investigação temática precisa ser feita por sujeitos em diálogo, no qual se manifeste a ação-reflexão deles sobre a situação em que se encontram sendo.

Nesse processo de ação-reflexão dialógica, a articulação coletiva é construída não de maneira homogênea, mas integrando e valorizando criativamente as peculiaridades de cada um. Com isso, formam-se pessoas economicamente produtivas, mas também politicamente capazes de autonomia pessoal e coletiva. Segundo Paulo Freire, uma das necessidades inerentes à construção da democracia no processo educacional é problematizar constantemente, a partir das experiências e da ação dos educandos, a situação em que vivem, assim como o conhecimento a ser apropriado e elaborado. Desse modo, no processo educacional explicitam-se os desafios que a realidade apresenta, reclamando dos sujeitos desse processo a ação-reflexão no sentido de buscar soluções. Pode-se dizer que a conscientização se processa como diálogo centrado em problemas da realidade.

Nesse contexto pedagógico, a vigilância panóptica (onde o vigilante observa e controla a todos sem ser controlado) é, para Freinet, subvertida por práticas de observação e discussão participativa, como o mural de avaliação, as assembléias do grupo. A punição torna-se geralmente inaplicável. "A crítica coletiva, o reconhecimento das faltas, o sentimento comunitário, o desejo de melhorar mostram-se em geral suficientemente eficazes. A única sanção normal é geralmente reparar o mal feito" (Freinet, 1973, p. 96). E o sistema de exames tende a ser substituído por procedimentos de avaliação e auto-avaliação pelo plano de trabalho, em que se busca evitar a classificação, a competição e a submissão (idem, p. 138-141).

Nas propostas pedagógicas de Freire e de Freinet, podemos identificar o confronto com os mecanismos disciplinares, na tentativa de promover processos criativos e produtivos de educação escolar. Todavia, tais propostas não se reduzem a um mero conjunto de técnicas ou métodos pedagógicos inovadores a serem aplicados na escola. Seria ingenuidade pretender adotar as propostas pedagógicas de Freinet simplesmente mediante a construção ou adaptação dos edifícios e dos espaços escolares à estrutura de salas comuns e oficinas especializadas (interiores e exteriores) ou adaptando os horários, métodos e programas a uma dinâmica mais criativa e participativa. Da mesma forma, o diálogo problematizador em torno dos temas geradores proposto por Paulo Freire não se realiza de modo espontâneo nem mecânico, pois essas intenções e metodologias podem ser facilmente assimiladas a uma estrutura disciplinar (que hierarquiza e submete os indivíduos) se as opções pessoais e a correlação de forças num determinado contexto favorecerem a hierarquização e sujeição nas relações institucionais. Da mesma forma que, numa instituição disciplinar, se desenvolvem paradoxalmente relações e opções de resistência que apontam outras formas de organização e instigam mudanças estruturais.

Portanto, o mais importante no trabalho de construção da democracia na escola é assumir criativamente as relações vivas, enfrentar corajosamente o jogo de forças de que participamos, criando e recriando criticamente, passo a passo, os meios que sustentem relações de autonomia e de reciprocidade e, ao mesmo tempo, neutralizando os que produzem isolamento e submissão.


REINALDO MATIAS FLEURI, doutor em educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), com pós-doutorado na Universitá di Perugia (Itália) e na Universidade de São Paulo (USP), é professor titular no Centro de Ciências da Educação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Participa desde 1992 do Grupo de Trabalho de Educação Popular da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação (ANPEd). É pesquisador e consultor do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), pesquisador colaborador do Centre de Recherche sur l'Intervention Éducative (CRIE, Canadá) e presidente da Association pour la Recherche Interculturelle (ARIC). Coordena o Núcleo de Pesquisa Mover - Educação Intercultural e Movimentos Sociais, na UFSC. Entre seus livros publicados destacam-se: Universidade e educação popular (Florianópolis: NUP/CED/UFSC, 2001); Educar para quê? (9. ed. São Paulo: Cortez, 2001); Educação intercultural: mediações necessárias (Rio de Janeiro: DP&A, 2003); Entre disciplina e rebeldia na escola (Brasília: Liberlivros, 2008). Coordena atualmente o projeto integrado de pesquisa "Educação intercultural: desconstrução de subalternidades em práticas educativas e socioculturais", financiado pelo CNPq. E-mail: fleuri@pq.cnpq.br
* Esta temática é discutida de modo mais amplo em Fleuri (2008).
1 "Seu princípio é conhecido: na periferia uma construção em anel; no centro, uma torre; esta é vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a construção é dividida em celas, cada uma atravessando toda a espessura da construção; elas têm duas janelas, uma para o interior, correspondendo às janelas da torre; outra, que dá para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado, um operário ou um escolar. Pelo efeito da contraluz, pode-se perceber da torre, recortando-se exatamente sobre a claridade, as pequenas silhuetas cativas nas celas da periferia" (Foucault, 1977, p. 156).
2 Dead Poets Society. Direção de Peter Weir. Estados Unidos: Buena Vista Pictures, 1989. 129 min. Color, son. 35mm. Sinopse: Em 1959, na Welton Academy, uma tradicional escola preparatória, um ex-aluno (Robin Williams) torna-se o novo professor de literatura, mas logo seus métodos de incentivar os estudantes a pensar por si mesmos criam um choque com a ortodoxa direção do colégio, principalmente quando ele fala aos estudantes sobre a Sociedade dos Poetas Mortos.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-24782008000300005&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

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